30 abril, 2012

Receitas de Abril.

Primeira quinzena: Pão com Filadélfia.
Prepare algumas fatias de pão, uma faca e abra a embalagem de Filadélfia. Barre suavemente o pão tentando espalhar o creme homogeneamente.


Não, não foi bem assim.
Desde o regresso de Copenhaga que por força de circunstâncias (supostamente académicas) me vi enfiada no estúdio 12 (ou mais) horas por dia para produzir e finalizar um concurso bastante exigente "em parceria" com o escritório do meu professor. Confesso que o grupo se debateu com dificuldades de foro conceptual na materialização do projecto e já quase não nos podíamos ver à frente. A refeição do dia consistia em pedaços de baguette arrancados e mergulhados em embalagens de Filadélfia que se iam acumulando num canto, junto a testes de impressão e maquetas partidas. Penso que comi toda a Filadélfia que se pode comer numa só vida. Porquê? Fácil, barato e rápido. Não há muitas opções por aqui, pelo menos para estudantes... O grupo foi ficando mais pequeno à medida que a Páscoa e outros compromissos se iam aproximando e acabei por ficar só eu e os meus dois companheiros franceses, os mesmos do concurso do início do ano. Com relativo custo e sacrifício (mais do que julgaria dispensar em Erasmus), pelo meio de gargalhadas e alguns stresses, lá conseguimos empacotar o projecto, depois de um par de noites em branco no escritório do meu professor (onde roubámos as bolachas todas, bebemos o café todo e fizemos testes de impressão à tola em rolos de papel fotográfico). Diga-se que o abuso do material e das instalações foi o único sinal de "parceria" de que desfrutámos com o dito escritório. Chegou-se a um ponto onde já nem recorríamos a palavras entre nós - habituados uns aos outros desde Setembro, depois de tantas horas de convívio dentro e fora da escola, a trabalhar, a viajar e a festejar, os sinais e gestos eram suficientes. Ficam os layers em francês, inglês e português do ficheiro CAD para testemunhar os avanços conseguidos na formação linguística de cada um.

Ufa!


Dia 4: Bolo rápido de Aniversário.
Diga à aniversariante que vai fazer testes de impressão e que volta já. Sorrateiramente, leve o casaco e a carteira consigo e desça ao supermercado mais próximo. Compre cacau e leite condensado. Volte à escola, roube uma taça que estava ali mesmo a calhar e meta a mistura no microondas durante 10 minutos. Entretanto, combine com com o amigo da aniversariante fazer um lanche surpresa com os colegas do estúdio no átrio do piso. Surpreenda-a enquanto esta está completamente absorvida no Archicad com: bolo, champanhe, flores e os amigos do Porto em directo dos Aliados, no skype! Considere naturais as reacções de confusão, desorientação, alegria e incapacidade de escolher uma língua commumente falada por todos os presentes.




Por azar, o dia 4 calhou mesmo em cheio na recta final do projecto. Raio do Facebook, toda a gente sabia que eu fazia anos. Até o professor. Só prova que (pelo menos) metade do tempo de entrega é passado a fazer refresh e scroll nas notícias sociais. Não estava minimamente preparada para a pequena grande surpresa que conseguiram engendrar e fiquei muito sentida. Tinha acordado com a decisão de que nem ia tentar ter um dia de anos. Nos dias subsequentes registou-se um tráfego intenso na minha caixa de correio (física!) que me deixou muito contente e com outro ânimo a caminho da faculdade e do trabalho que me esperava. Mostrava com orgulho e carinho os postais que recebia aos meus colegas.
Oooohh...




Domingo de Páscoa: Ovo Kinder pequeno.
Rode o ovo na mão, procurando com o indicador uma falha na prata que possa levantar. Puxe pela prata e deixe cair o ovo na cova da outra mão. Abocanhe o topo do ovo e trinque até sentir a cápsula de plástico amarela interior. Segure uma mão por baixo do queixo para apanhar migalhas de chocolate que possam cair. Retire a caixinha de dentro do ovo e coma o resto do chocolate. Descubra o que contém.
Nota: pode ser servido como sobremesa após um almoço de páscoa consistido por pão com Filadélfia.


E pronto. Assim se fez a Páscoa.


A Grande Salada Russa.
Na segunda metade do mês aconselha-se passar do regime Pão com Filadélfia para a dieta Pão com Caviar. Para acompanhar, beba muito vodka.




Descobri que afinal gosto de caviar. Sobretudo quando é o original, comido em Moscovo. Pego num pedacinho de pão bom, barro manteiga e depois uma camada de bolinhas laranjas em cima, que deixo rebentar na boca como uvas pequeninas. Mmmm...
Que dizer da Rússia? Penso já ter escrito no meu caderno tudo o que poderia querer lembrar de mais uma viagem atribulada, intensa e muitíssimo divertida. Basicamente, fomos lá comer e beber. E claro, ver a Praça Vermelha, poh! Uma recompensa bem merecida depois de termos entregue o concurso e passado fome durante duas semanas.




"São Petersburgo recebeu-nos com muita chuva" foi a primeira entrada que registei. E que bem que chovia. Lençóis de água, diria eu. "No aeroporto, não se viam mais turistas e foi completamente encharcados que entrámos num autocarro onde ninguém pagou viagem." O bilhete afinal pagava-se à saída... "A chuva não nos deu tréguas e foi com as mochilas e os pés em água que percorremos a Nevsky Prospekt à procura do Central Hostel. Passámos por ele e nem o vimos, voltámos atrás. [...] Uma enorme escadaria lenta, de pedra, subia pelo interior do prédio velho. Tinha sido inteiramente pintado (ou salpicado) de tinta azul-cueca brilhante. [...] Escusado será dizer que o hostel é o mais "crappy" possível. Pagámos em dinheiro à menina da recepção escura (que era a única que arranhava o inglês) e ela mostrou-nos o quarto: tectos altos, frio, janelas "seladas" contra o frio do Inverno russo (que dura ainda agora em Abril) com fita-cola de papel e uma parede falsa (alguns 7cm de espessura) por onde se faz a entrada no quarto através de uma porta de correr (muito manhosa). Diga-se que ainda agora pendurei o meu casaco encharcado num cabide preso na dita parede e aquilo abanou por todo o lado. Parece que alguém reaproveitou a parede e a colocou ali, porta e tudo. Não vai até cima e ouvimos conversas russas no corredor como se estivessem a decorrer dentro do quarto."
A precariedade do alojamento (que se repetiu mais tarde em Moscovo), foi apenas mais um motivo de descoberta cultural que pontuou e proporcionou mais situações caricatas memoráveis à nossa aventura. Se pudesse voltar atrás sabendo o que sei, faria as mesmas escolhas. Entradas como "parece que recuámos ao início dos anos 90 - as pessoas, as roupas, as cores, o ambiente" ou ainda "cheira a mijo e tabaco" (e álcool!) farão parte das memórias sensitivas que para mim melhor caracterizam a Rússia. Julgo que vim de lá com mais uns mil cigarros fumados, por exposição passiva àqueles ambientes.


"O comboio nocturno para Moscovo partia às 11h30. [...] Parece que fica tudo mais longe do que o mapa sugere. Chegámos mesmo em cima da hora. A estação, afinal, era a que vinha por engano no lugar da Finland Station no guia do Wallpaper. Tínhamos passado por lá (e pela estátua enorme de Lenin na praça em frente) e ficado desapontados por não encontrar o lindíssimo tecto triangulado com que agora nos deparávamos na Moscow Station. Um enorme mapa das linhas férreas russas dominava umas das paredes. Debaixo do mesmo tecto triangulado, corremos pela plataforma exterior até à última carruagem do comboio, supostamente a nossa. Afinal, era só a do R. e do M. Uma música clássica trágica tocava bem alto nos altifalantes da estação, atingindo o clímax enquanto corríamos de mochilas às costas. À entrada da nossa carruagem de 3ª classe um guarda controlava nomes, números de passaporte e camas atribuídas. Falava um pouco de alemão, nenhum inglês. Entrámos, meio tocados pelo álcool do jantar e pela emoção da correria, numa carruagem em open space, cheia de camas-beliche e cheia de... russos, claro.





[Este apanhou o mesmo comboio, no mesmo sítio. Mas deve ter ido em 1ª classe... "Les Poupées Russes"]



"Do you speak english?" perguntei ao meu vizinho. "A little bit", respondeu com forte sotaque. Eu e o T. abrimos umas cervejas e conversámos enquanto o comboio arrancou marcha. O nosso vizinho ainda nos emprestou o isqueiro para abrir as garrafas e mais tarde perguntou-me de onde era. "Portugal." "Ah. Ocean." "Yes. Atlantic Ocean. Very far away." Consegui adormecer no meio daquela gente toda. Dormi 4h, vestida e de lentes. A maior parte dos russos estava bem equipada para a sua noite no comboio - pijama, pantufas, robe, escova de dentes e cházinho. Surreal.
Acordei às 6h da manhã com a RetroFM a berrar o YMCA. Dei um pulo na cama. Devemos estar a chegar. Espreitei lá para fora, o dia já estava claro e viam-se construções, sobretudo grandes blocos habitacionais dos anos 70, cinzentos. [...] "Lisbon!" diz-me jovialmente o meu amigo russo, indicando com as mãos a paisagem urbana que se desenrolava lá fora. Passado pouco tempo é a voz no altifalante que anuncia a chegada à cidade de Moscovo. [...] Às 9h30 já estamos na Praça Vermelha."
Em Moscovo tivemos a sorte de ter uma guia especial, a Anna, a russa maluca da nossa turma em Estocolmo. Graças a ela conseguimos-nos orientar numa cidade tão grande e penso que devemos ter ido aos melhores sítios que um visitante nesta cidade poderia escolher. Comemos bem, mais uma vez, e devemos ter bebido demais.
"Aprendi que Moscovo é uma mistura de símbolos poderosíssimos: comunistas, capitalistas e religiosos. Tudo a conviver em grande intimidade." A quantidade de informação com que sou assolada deixa-me tonta. É pouco o tempo para observar, digerir, relacionar e perceber. As perguntas são muitas e as respostas (e o inglês) da minha colega deixam-me ainda mais confusa. O trânsito é infernal e rápido, a poluição terrível e o metro deixa-me de boca aberta. A riqueza e diversidade urbana é aliciante e fico contente por vaguear sem mapa e sem rumo, por vezes deixando a Anna guiar-nos cegamente, pela cidade. Tudo é monumental e impositivo, esmagador. Mas passando por passagens apertadas e descobrindo pátios escondidos existe uma outra cidade não menos intrigante e desejável. Talvez não para o turista comum, mas antes para estudantes de arquitectura, da cidade e dos seus habitantes, interessados na veracidade, diversidade e genuinidade dos lugares. Felizmente não perdi nenhum rim a meio caminho entre as minhas explorações urbanas...




A Anna levou-nos ainda a conhecer a escola dela. "Uma casa grande, do século XIX, provavelmente, e com uns azulejos bonitos na entrada surgiu por detrás de um pátio. Passámos pela guarita da entrada, onde umas câmaras de vigilância estavam apontadas para nós. [...] A escola da Anna reunia todo um conjunto de práticas ligadas à arquitectura e não apenas o curso geral de arquitectura. Planeamento urbano, design, paisagismo, ... era feita alguma distinção entre estas áreas, mas concentravam-se num mesmo edifício. Fomos recebidos por duas amigas que nos acompanharam através da casa e nos mostraram trabalhos de alunos, uma aula de desenho de modelo nos ateliers, uma avaliação de projecto e até mesmo um pequeno concerto que estava a acontecer num pequeno salão - ali, até se tocava e cantava música clássica. Insistiram para que reparássemos nos desenhos a aguarela e pastel, representações fidedignas da cidade e de edifícios executadas nas aulas de desenho da escola, por alunos. Já tinha reparado que a Anna sabia desenhar bastante bem. Vimos maquetas que interpretavam composições coloridas e abstractas de artistas como Malevich. Vimos cartazes de habitação de 3º ano. Vimos desenhos de viagem de história da arquitectura russa. Vimos esculturas iguais às que desenhei nas Belas Artes do Porto. Inevitavelmente, lembrei-me do Porto, pois claro. [...] Fomos conhecer a mãe dela. [...] Uma senhora baixinha e cheiinha, de cabelo curto e a cara da Anna. Não falava inglês, talvez por vergonha, mas tenho a certeza que acompanhava a nossa conversa e participava em russo, dirigindo-se a nós, enquanto a Anna traduzia. Aparentemente, era directora daquilo tudo. Estava à frente do departamento de "landscape" e mostrou-nos com um entusiasmo tranquilo as instalações e os trabalhos dela e dos alunos. Percebemos que era uma artista bastante conceituada e que ao longo de vários anos tinha colaborado com Kengo Kuma. Convidou-nos a entrar no seu gabinete onde nos pôs à vontade e conversou mais um pouco. Era uma pessoa extremamente gentil e culta [...]. O espaço estava decorado com prémios, trabalhos, livros e fotografias da sua carreira profissional. [...] Apesar de ainda estarmos a abarrotar do almoço, fez questão de nos oferecer chá e bolo e ainda nos presenteou a cada um com um ovo pintado da Páscoa."


Fotos da Rússia? Analógicas, por favor...


Último fim de semana do mês: Marshmallows na fogueira.



Ligue a um ou mais amigos. Procure um mapa do arquipélago de Estocolmo e escolha uma das milhares de ilhas existentes. Veja o horário dos barcos e meta-se num, de preferência num dia de sol. Deixe-se ir. Desembarque numa ilha de 1km por 0.7km. Palmilhe a ilha, suba a calhaus, observe a passarada. Encontre o spot de acesso mais complicado para montar a tenda, tenha em atenção a vista sobre o mar. Faça um piquenique acompanhado de vinho tinto italiano, mas evite o queijo Filadélfia. Antes que fique demasiado escuro, comece a preparar a fogueira. Procure ramos ou tronquinhos secos e ignore o amigo que lhe tira fotografias enquanto serra lenha. Precisa de pauzinhos e um isqueiro para acender o lume. Juntem-se todos, continuem o piquenique à volta da fogueira e aproveite o stock de álcool que todos se lembraram de trazer menos você. Agora sim, pode abrir o pacote de marshmallows e distribuir pauzinhos pelos presentes. Pressione o marshmallow na ponta do pauzinho até o sentir preso. Estique-se sobre as brasas e pegue fogo ao primeiro marshmallow num erro típico de amador. Repita a operação, mas desta vez com cuidado. O marshmallow está no ponto quando o seu interior estiver totalmente derretido. Coma muitos senão outros o farão.


Sugestão para o mês de Maio: tudo na brasa!
Agora que o termómetro de Estocolmo indica temperaturas que rondam os 15ºC (ou mais!), há sol, flores, relva verde e dias compridos, prevê-se a proliferação do fenómeno: barbecue... Já me cheira.


E, só por acaso: depois de lerem este blog espectacular, não haverá por aí alguém que me queira oferecer uma posição como cronista de viagens e culinária?...
Até tenho novas fotos de perfil!



Sem comentários:

Enviar um comentário