30 setembro, 2012

Ciganos na Noruega | o norte acaba aqui.


Só existe uma estrada.
Lá bem em cima, a rota é certa. Não há desvios, não há alternativas e o único cruzamento que vimos foi motivo para parar e tomar uma decisão difícil: Nordkapp? Mas antes mesmo dessa estrada solitária onde os únicos sinais de vida são as manadas de renas e antigas cabanas sami, antes disso, ainda há as escarpas de Andøya, o brilho de Senja e o surrealismo de uma cidade chamada Tromsø.
Já na zona norte de Lofoten, encontrámos finalmente um parque de campismo com duche e kitchnette onde descansar. Montámos a tenda no meio das caravanas que por ali estavam estacionadas, não se viam mais campistas, e jantámos sopa quente na praia tranquila mesmo em frente, com o recorte das montanhas bicudas a entrarem na água em pano de fundo. No dia seguinte, eu a E. deambulámos preguiçosamente pela pequena vila enquanto o resto do grupo participava num whale safari. Supostamente, a poucos quilómetros da costa existiria um dos melhores spots no mundo para a observação de alguns tipos de cetáceos. E os locais sabiam disso, tirando partido nos preços que exigiam. Isso e a minha inaptidão para aguentar os balanços de um barco em acção, resolveram a questão. Mais tarde vimos as fotos todos juntos: espirros de água e uma cauda de fora que me fazia lembrar o anúncio aos Açores repetiam-se vezes sem conta.
A meio da tarde apareceram a acelerar.
Temos de desmontar o acampamento! O último ferry parte daqui a meia hora!
O tempo começara a pressionar-nos. Contávamos os dias e os quilómetros que ainda nos faltavam para atingirmos o nosso objectivo mais a norte: o memorial de Zumthor às bruxas na cidade desencantada de Vardø.




Alguém me disse que o ferry levaria meia hora. Decidi ficar no convés a respirar nervosamente o vento gelado que sacudia o meu cabelo. O barco balançava e eu estava consciente disso. Disso e de que já não tinha mais comprimidos para o enjoo. O tempo estava cinzento e por mais que esforçasse os olhos não conseguia discernir terra no horizonte. A meia hora acabou por ser uma hora e meia ao fim da qual, mais calma por estarmos a entrar numa pequena baía pontuada pelas características casinhas piscatórias norueguesas, o francês foi dar comigo toda enregelada na proa do barco. Aparentemente, durante esse tempo, o H. tinha sofrido um pequeno acidente por exaltação de ânimos aquando do anúncio de que um grupo de golfinhos se nos tinha juntado, acabando por partir a cabeça.
Olhei horrorizada para o francês. Tás a brincar. O quê???
O H. estava sentado numa cadeira junto ao comandante, na ponte, a olhar fixamente para a pequena vila onde entrávamos. Duvidei logo pela sua expressão apática sobre a sua saúde mental. Pelo menos ainda ia falando.
Mal desembarcámos começámos a seguir as direcções que nos haviam dado para o hospital mais perto, que ficava a cerca de uma hora de distância. O R. largou-nos num sítio pouco amistoso pelo caminho e seguiu com o paciente e a M. Apareceram por volta da meia noite, desta vez o sol tinha-se escondido por detrás de uma montanha, e o H. vinha animado com a atenção que recebera das enfermeiras norueguesas.
E se conduzíssemos mais um bocado?


[+/- 01:30h em Bergsbotn, Senja]


 [+/- 02:00h em Tungeneset, Senja]


[+/- 03:00h, algures onde as renas pastavam ao lado da praia]

Madrugada, sempre de madrugada. Conduzíamos debaixo daquele sol fortíssimo que nos cegava até encontrarmos o sítio perfeito para acampar. Era por isto que tínhamos vindo, pela paisagem.
O dia seguinte começou, para variar, com um brunch preguiçoso às duas da tarde e seguimos para Tromsø.
Ao fim da tarde, e depois de mais um fantástico túnel que terminava em rotunda subterrânea e que mentalmente adicionámos à nossa lista de "os mais espantosos túneis noruegueses", já nos encontrávamos pela cidade. Orgulhosamente, exibia em várias zonas referência à fábrica de cerveja local, a última mais a norte. Como viemos a descobrir, Tromsø tinha uma vida nocturna fervilhante durante o verão, e nós fizémos questão em tomar parte dela. Um misto de vila piscatória tradicional com bares onde se passava Michel Teló, loiras maduras de vestidos espampanantes verde alface, velhos lobos do mar podres de bêbados que caíam das cadeiras, caçadores de ursos polares e focas, pessoas disfarçadas de smurfs (?!) e de noivas tatuadas, pessoas de cor, homens musculados envolvidos em brigas mas mal acertando no que quer que fosse devido à alta taxa de alcolemia ingerida, ...
Tromsø é indiscritível.
E o melhor de tudo, é que é dia toda a noite. E vê-se de tudo ao vivo e a cores.
Dançámos, bebemos, divertimos-nos e acabámos a noite a devorar fatias de pizza da Seven Eleven (há quanto tempo não se via uma!) antes de regressarmos ao carro para conduzir mais uma hora até encontrar um campo onde literalmente aterrámos. Estava tudo ainda meio bêbado, a tenda mal se segurava em pé.
Quando acordei, estava deitada no meio do campo verde, ao sol e com um vento bom a refrescar-me a memória da tenda quente e pegajosa. Sem óculos e com um zumbido da ressaca nos ouvidos, olhei para o mundo desfocado à minha volta e senti que tinha regressado de um sonho para cair noutro.
Um mergulho no lago frio ali perto acabou por me despertar.



Tundra.
Foi o R. o primeiro a falar-me disso. É um tipo de paisagem caracterizado pela ausência de árvores devido ao congelamento persistente do solo que impede o desenvolvimento da vegetação. No Ártico, este fenómeno reflecte-se na paisagem castanha da planície, onde as renas sobrevivem à custa de arbustos rasteiros e o musgo que cobre todas as superfícies. Mesmo em Junho, vimos grandes areas congeladas. O termo deriva da palavra russa empregue pelos samis antigos da região. Gosto da fonética de tundra. Para mim, tudo o que vimos na única estrada do norte foi tundra.
Começou a chover muito. Procurámos um parque de campismo onde nos refugiar, mas os dois que visitámos eram extremamente hostis. Não estávamos propriamente numa zona turística. Desconfiados, sem ver ninguém, mas sabendo que éramos observados, acabámos por montar acampamento numa zona de repouso junto à estrada. Logo pela manhã, alguém muito zangado e relativamente ameaçador mandou-nos embora.
Conduzimos até Vardø. A paisagem junto à costa era agora não menos vazia, mas mais misteriosa com os seus bancos de névoa a pairar sobre um mar que já não era tão tranquilo como o que víramos dias antes. Aqui ouviam-se as ondas a rebentar, os sons distorcidos e abafadas pelas neblinas.
A vila de Vardø era simples e sem nenhum interesse especial. Algumas construções de madeira apodrecidas, outras mais recentes de tijolo e betão. Uma igreja branca dominava o ponto alto da vila e umas estradas largas onde não passava ninguém levavam a um porto com embarcações árticas de grande porte. Apesar de tudo, tinha um posto de turismo e obtivemos as indicações para o memorial das bruxas. Aproveitámos também para pedir indicações sobre o caminho... de regresso.
Afinal, a obra de Zumthor era já ali ao lado, nas traseiras dumas construções pobres de habitação. O sítio, com a sua descaracterização natural e urbana, não impressionou. Mas a obra em si afirmava-se como um elemento simultaneamente sólido e volátil. Entrar no longo corredor suspenso de tela preta pontuado por luzes da cor do fogo e ocasionais quadrados de luz branca e crua vinda do exterior é uma experiência quase espiritual. Ao longo desta estrutura, estão catalogados todos os casos de condenação por bruxaria e feitiçaria que o local testemunhou na Idade Média. E foram muitos. Está tudo criteriosamente documentado nas paredes frias de tela preta por onde se sente o vento a assobiar. É um ambiente estático. Um memorial na paisagem.
O norte acaba aqui.






14.06 - 18.06
Lofoten-Andøya-Senja-Tromsø-Alta-[pertíssimo do Nordkapp]-Vadsø-Vardø
1370 km

[Nota: A viagem de regresso começou mal abandonámos Vardø e apenas entrámos em Estocolmo na noite de dia 20. Atravessámos o norte da Finlândia e perfizemos o total de 7 600 km quando demos a viagem de 3 semanas por terminada. Com alguns percalços, muito cansaço e alguns momentos de insanidade mental após uma directa a conduzir, ainda houve tempo para uma última sauna na Lapónia sueca enquanto desejávamos avidamente uma cama e um chuveiro. A tenda laranja, essa ficou enrolada nas últimas duas noites. Após 18 noites tinha-se finalmente esgotado a coragem para acampar.]

29 setembro, 2012

Ciganos na Noruega | Capítulo 4



Mexilhões. Sim, mexilhões!
Mexilhões ao pequeno almoço acabadinhos de "pescar" pelo H. que garantiu estarem frescos e consumíveis. Eu e a E. torcemos o nariz (e com alguma razão a julgar pela careta do T. quando experimentou o petisco) e ficámos-nos pelo café do costume. A última coisa que pretendia era uma diarreia no mato...

O H., que nos acompanhou desde a saída de Trondheim, fitava hipnotizado os cenários do outro lado da janela do carro. "Ah, olha, desculpa lá, mas esta parte do caminho vai ser um bocado chata que não há nada para ver". Nós avisámos. E ele olhava para nós sem compreender. "A paisagem é espantosa", dizia ele.
Trocávamos olhares. Hmm. Pois. Havias de ter visto o que vimos nesta última semana...!
O descanso em Trondheim marcou o fim da primeira etapa. Acampados no jardim da G., acordávamos tarde, tomávamos o brunch ao sol, a casa por nossa conta. Descalços e de pijama, saíamos dos sacos de cama para nos deitarmos a aquecer na relva em frente à casa. Tivemos direito a uma visita guiada à cidade e cozinhámos em agradecimento pela hospitalidade uma espécie de risotto. A G. levou-nos ainda num longo passeio para nos mostrar o seu lago secreto onde me vi obrigada a mergulhar nas águas escuras e geladas (não tanto como as que ainda viria a descobrir nos dias seguintes) da floresta ao fim da tarde.
Não conhecia a G. E eles pelos vistos também não. Apercebi-me disso quando perguntou-nos a todos o que estudávamos. No fundo, todos a conheciam, mas na realidade... não. Como vim a saber mais tarde, apenas se tinham encontrado em Estocolmo por duas vezes. Ela sabia falar 7 línguas, já tinha vivido em Itália e em Buenos Aires, era descendente de mãe holandesa e pai norueguês, tinha apenas uns 20 anos e tocava piano e cantava numa banda. Falou-me do Stockholm Lisboa Project que desconhecia e surpreendeu-me com algumas palavras em português que apanhara nalgum fado. Era uma pessoa eternamente sorridente e afável e ficou-nos muito agradecida pela ajuda que lhe demos na última noite com umas traduções para as nossas respectivas línguas de um conjunto de menus de um restaurante italiano de uma amiga. A sessão arrastou-se durante horas e pelo canto do olho vi os olhares desesperados que o R. lançava em todas as direcções enquanto puxava pelo cabelo. "Worst drinking game ever" foi como catalogou o serão.





Back on the road.
De volta aos nossos hábitos de ciganagem.
O momento alto desta parte do trajecto foi o avistamento de um glaciar. Ou melhor, foi a emoção da portuguesa ao finalmente ver um glaciar, o que foi motivo para uma sessão de fotografias da portuguesa a fotografar o seu primeiro glaciar.
Após uma noite acampados junto a um lago onde a comunidade mosquiteira proliferava abundantemente, descobrimos na noite seguinte uma praia de sonho. A luz dramática que iluminava tudo a partir de um céu carregadíssimo rasgado por dois, três e quatro arco-íris simultâneos que nos fascinou, durou o tempo suficiente para montarmos o acampamento e corrermos praia acima e praia abaixo. Brevemente correríamos para dentro da tenda afugentados pelo lençol de água que caía do céu. Areia, vinho entornado, roupas molhadas, e o vapor do jantar ao lume - tudo convergia naquele espaço diminuto de plástico laranja.
No dia seguinte chegávamos a Bodø. A entrada em cena da M. e do Th. trouxe toda uma nova dinâmica aos acontecimentos que se desenrolaram a partir daqui. Gente fresca! Novas ideias! Novos risos!
Há 3 dias que não tomávamos banho (a não ser os banhos de chuva) e eu e o R. tínhamos sacrificado nessa manhã os nossos colchões de princesa pelo bem estar do espírito colectivo dentro da carrinha. Ficaram na praia de sonho, não havia espaço.
Antes mesmo de aterrarem as novas visitas, ainda foi necessário um pequeno detour para se proceder a uma despesa pouco bem-vinda. Um novo pneu. Para substituir o que tínhamos furado ao passar a ferro uma rocha na berma da estrada no dia anterior. Continuo sem querer acreditar que tivemos mesmo de comprar um pneu norueguês, a custo norueguês.
Já com a M. e o Th. dentro da carrinha, pusemos-nos em fila para o ferry para Lofoten. Como a viagem era bastante concorrida, esperámos umas boas horas, aproveitando para sacudir e secar a tenda enquanto fazíamos um lanche junto à fila de caravanas e turistas.








Chegados à península da "Pata de Lince" (Lofoten), o primeiro sinal que se recebe da actividade daquela zona geográfica é o intenso cheiro a peixe. A península tresanda a peixe seco. Qualquer lado onde se vá, cheira, nem mais nem menos, a bacalhau. Tive alguma dificuldade em fazer perceber aos meus amigos porque é que o nosso prato nacional é um peixe da Noruega, mas acho que acabaram por reter a informação. A palavra aprenderam decerto. "Bácáláo, bácáláo"...
Os estendais de bacalhau e de cabeças de peixe encontravam-se em todo o lado. Percorrer as galerias era quase macabro, estava tudo morto, pendurado e acabado. Vazio e perdido na paisagem de rocha e montanhas.
Foi numa encosta perto de um desses cemitérios de peixe que passámos a primeira noite em Lofoten com as gaivotas zangadas a grasnar a toda a hora. Não cheguei a perceber porque não atacavam os estendais, calculo que o peixe já estivesse demasiado salgado para elas.
Os novos amigos do R., um casal de namorados noruegueses que fazia uma viagem semelhante à nossa mas de mota, fizeram-nos companhia nessa noite e na seguinte. Conversámos e bebemos até de madrugada, animados pelo aumento significativo do nosso grupo. A M. e o Th. foram logo instruídos no funcionamento do acampamento e, na manhã seguinte, tomávamos banho no lago arrepiante que ficava ali em frente, no vale formado por duas montanhas ainda com restos de neve.
O que mais me surpreendeu em Lofoten foram as praias paradisíacas de águas turquesas e areias finas e brancas que eu não fazia ideia de existirem tão, tão, tão a norte. Num único enquadramento (e porque não pintá-lo debaixo do sol da meia noite?) podia-se ver as montanhas rochosas com neve a suavizarem-se junto aos campos verdes com ovelhas a pastar que por sua vez se esfumavam na praia e no mar.
Foi na noite seguinte que comemorámos o nosso primeiro e credível sol da meia noite. Montámos o acampamento numa praia, mais uma vez, e cozinhámos raclette que o Th. havia trazido e que ao segundo dia na arca frigorífica já libertava um certo senhor odor. Esta noite meia surreal passada na praia com o sol a baixar e logo a levantar-se antes sequer de bater na linha de horizonte terminou muito tarde, por volta das 5 ou 6 da manhã, quando as nuvens que então apareceram determinaram uma escuridão aprazível para o sono. Bebemos em demasia, sinto que a noite foi mesmo uma comemoração, e pelo meio de conversas, gargalhadas e intimidades houve uma ida de grupo a banhos nus e um concurso para averiguar quem detinha a melhor arma branca: se os suíços, com o seu canivete, se o norueguês, com a sua faca sami. Para isso, tentaram durante meia hora serrar com os respectivos instrumentos de corte um tronco gigante abandonado na praia. Facilmente se adivinha quem detinha maior vantagem. Apesar de os suíços terem feito um trabalho deveras notável.





+/- 00:00h


09.06 - 13.06
980 km
Trondheim-Mo i Rana-Hellåga-Ågskaret-Storvika-Bodø-Lofoten
Fotos: acabados os filmes, virei-me para a minha velha e fiel Sony DSC H1.

18 agosto, 2012

Ciganos na Noruega | Capítulo 3



O dia de anos da E. foi um bom dia para (quase) todos. Começou inundado de sol.
Decidimos subir às montanhas e procurar o melhor spot possível para prepararmos o brunch matinal. Os rapazes tinham comprado alguns frescos e ingredientes extra na véspera para surpreenderem a E. Na subida, parámos num dos pontos altos do itinerário que agora seguíamos atentamente pelo livro – a ponte projectada sobre o fiorde em Stegastein. Por sorte, àquela hora, os turistas ainda não tinham inundado o sítio e demorámo-nos a tirar fotografias. Seguimos, sempre a subir, a paisagem ficou branca de neve. Era impressionante a altura que atingia nas bermas da estrada, algumas das “casas de banho arquitectónicas” estavam mesmo inacessíveis, enterradas debaixo da neve. Parámos no miradouro em Vedahaugane para prepararmos um brunch branco de neve.




Entretanto, o M. tinha dado conta de que se esquecera da máquina fotográfica na ponte de Stegastein. Tirámos as caixas de comida e o equipamento que precisávamos para fora do carro enquanto ele voltava para trás, à procura da máquina (que foi dada definitivamente como desaparecida). As pessoas nos poucos carros que passaram por nós naquela manhã solarenga e amena ficavam incrédulos a olhar para quatro jovens relaxados, perdidos algures nas montanhas, a cozinharem bacon e ovos num fogão portátil, com imensa tralha a toda a volta e sem nenhum carro por perto.
Uma hora depois o M. regressou com a carrinha e voltámos à estrada. Descemos a grande velocidade pelo asfalto sinuoso, nunca adivinhando o que estaria para lá da curva apertada com a visibilidade cortada pelas muralhas de neve. Novo ferry, novo fiorde, águas transparentes, muito convidativas. Ainda testámos com o pézinho a temperatura da dita, mas rapidamente mudámos de ideias. De novo a trepar as montanhas, desta vez chegámos a Nedre Oscarshaug, Sognefjellet, onde um elemento de vidro giratório montado numa estrutura metálica permitia observar e saber a altura das montanhas circundantes, as mais altas da Noruega. Era uma peça bastante elegante.


A meio da tarde, estacionámos no último ponto marcado no percurso daquela região, o parque de merendas de Liasanden, e discutimos novamente o rumo a tomar enquanto o nosso fiel primus amarelo aquecia água para o chá das cinco. Punha-se a hipótese de fazer um pequeno (grande) desvio para Este para visitar o Reindeer Pavilion dos Snøhetta. Era uma obra muito pequena e estávamos na dúvida se valeria o esforço, nunca voltaríamos a estar tão perto. Penso que, no fundo, nós os quatro, os interessados em arquitectura, tínhamos a certeza de que queríamos lá ir. Apenas o M. divergia – tinha de acabar e enviar um trabalho para a faculdade dele ainda nesse dia e optou por ficar em Lom, no parque de campismo, de onde partiríamos na manhã seguinte de acordo com o itinerário estabelecido no livro das rotas turísticas.
Não sabíamos muito bem onde ficava a obra. Apenas tínhamos retirado do Archdaily uma morada e colocado no Google Maps para ficarmos com uma ideia. Mas estávamos conscientes de como isto poderia correr mal.
Conduzimos durante talvez uma hora e meia. Ninguém conhecia o pavilhão, nem no centro de turismo de Lom, nem num acampamento de treino militar a escassos 2 ou 3km do sítio que procurávamos. Não se viam árvores e os montes ainda continham restos de neve no meio duma paisagem áspera e vazia, dominada pelos castanhos e verdes secos de uma vegetação muito rasteirinha. Demos com uma zona com cartazes informativos e uns poucos carros estacionados junto ao início de um percurso pedestre. Sem sabermos se o caminho nos levaria até ao sítio pretendido, empreendemos marcha. Após 1,5km avistámos, com entusiasmo crescente, a construção a delinear-se no horizonte à luz branca dum fim de tarde nublado.


Uma caixa de aço da cor da paisagem. A entrada, uma parede ondeante de troncos de madeira dispostos horizontalmente, esculpidos. No interior, a distorção da parede de madeira cria uma pequena bancada que remata ao fundo num movimento que envolve o fogão preto suspenso. A face oposta do paralelepípedo é inteiramente envidraçada, espelhando a paisagem. Pequenos prumos metálicos escuros seguram os vidros ao nível do chão, reflector, permitindo a apreciação total e sem interferências do exterior, evaporando-se a fronteira entre um e outro ambiente.
Experimentámos a porta, duvidando da nossa sorte, e ela abriu-se, convidando-nos a entrar. Sentimos o ar morno do interior ao mesmo tempo que o nossos ouvidos eram inundados de várias vozes alegres. Muitos olhos azuis suspenderam as conversas e fitaram-nos. Um grupo de seniores (todos certamente reformados) estavam sentados nas bancadas em torno do fogão e conversavam animadamente. Equipados desportivamente, com botas de montanhismo e apetrechados com o thermos do café e um par de binóculos cada, eram os membros do Reindeer Club que ali estavam no último encontro da estação. Sejam bem vindos! Curiosos e hospitaleiros, dirigiram-se-nos num inglês hesitante enquanto uma senhora sorridente nos distribuía bombons de chocolate. Eram todos habitantes duma localidade próxima e quiseram saber de onde vínhamos. Estavam muito orgulhosos do seu novo observatório, “acho que até ganhou um prémio”, disse alguém.
Sentámos-nos e ali ficámos, calados, durante bastante tempo, as vozes dos nossos amigos noruegueses a acompanharem os nossos pensamentos. Em frente, erguia-se a montanha Snøhetta. Toda a força deste pequeno objecto arquitectónico dirigia-se à paisagem, o resto contribuía para o conforto de quem assistia ao cenário exterior. Quase que podia vê-las, às renas, disfarçadas na minha imaginação naquela paisagem malhada e despida. Que sorte estar aqui. Apesar de ter registado mentalmente pequenos aspectos da construção (sobretudo as grandes peças de madeira que nunca tinha visto ser trabalhada daquela forma), demorei-me especialmente a usufruir do espaço para o efeito para o qual tinha sido projectado – enquanto observatório. Quando finalmente nos decidimos arredar dali para fora (com mais uns chocolates nos bolsos) o único comentário que se fez referia-se ao facto de termos deixado o M. para trás... senão, poderíamos ter passado aqui a noite, num lugar incrível.




Ainda dentro dos horários convencionais (que em poucos dias seriam completamente subvertidos), acordámos de manhã no dia seguinte, arrumámos e saímos, esquecendo (?) de pagar a noite no parque de campismo. Espreitámos a bonita igreja de madeira local e juntámo-nos aos outros turistas que começavam a rastejar molengamente pelas estradas. Parámos mais à frente num engarrafamento de roulottes causado pelo avistamento de uma manada de renas e à hora de almoço já nos encontrávamos num dos fiordes mais concorridos com os seus ferries de cruzeiro gigantes (pequeninos nestes montes) a conferir escala ao vale. Evitámos atropelar os turistas ricos com os seus chapéus de palha e óculos de sol que tentavam trepar até ao miradouro e desesperámos atrás dos autocarros que roncavam em primeira enquanto escalavam as estradas apertadas.
Ainda não nos tínhamos visto livres das enxurradas de turistas que os autocarros despejavam quando chegámos ao novo café (já a funcionar, mas ainda em fase de acabamentos) de Gudbrandsjuvet. Mais uma vez, uma série de pontes e percursos sobre uma cascata levava ao local que ficava escondido no meio da vegetação tranquila e com vista privilegiada sobre a corrente de água. A grande diversidade de materiais (sempre num registo natural e neutro) e alguns motivos divertidos integrados na construção conferiam algum dinamismo e interesse às diferentes situações que se atravessavam no interior (de dimensões bastante reduzidas) e no exterior.

O momento alto do dia pelo qual esperávamos chegou pouco depois - o conjunto de Geiranger-Trollstigen.
Tudo brilhava, tudo reflectia luz. O manto branco, ainda espesso, que cobria as montanhas diluía-se nos canais e piscinas que ajudavam a reflectir a luz solarenga ao longo dos percursos, acompanhados pela cantilena de água a fugir. No fim do caminho, tal como um lagarto ou uma iguana com a cabeça e as patas esticadas em diferentes direcções, um miradouro agarrava-se, rasteiro, à encosta da montanha, atrevendo a empoleirar a cabeça no vazio. Lá em baixo, a estrada estreitinha arrepiantemente sinuosa parecia convergir com os fios de água prateados que desapareciam no vale verdejante. [que poder metafórico!]
Foi, sem dúvida, um dos meus cenários preferidos.
Tirámos à sorte quem seria o afortunado a levar a cabo o rally pela referida estrada abaixo, calhando a tarefa ao francês que propiciou um momento de verdadeira adrenalina de alta velocidade e que, pelo menos da minha parte, provocou gritinhos iiiiiiihhhhh e alguns pensamentos catolicistas como ai-jesus-que-se-vem-alguém-a-subir-morremos-aqui.





Nesse fim de dia, aportámos em Ålesund para umas cervejas ao sol num pequeno cais e encontrámos, a escassos quilómetros da cidade, um campo junto ao mar onde passar a noite. Acendeu-se uma fogueira e comemos salmão roubado (obra da E.) com knäckebröd trazido da Suécia enquanto esperávamos pelo escuro que substitui o sol e que, nessa noite, não veio mesmo.


Domingo, dia 8 de Junho, tínhamo-nos comprometido estar em Trondheim para acolher um novo membro que chegava nessa tarde de Estocolmo. Para além disso, tínhamos uma anfitriã que nos esperava para nos dar guarida ao fim do dia. Foi, portanto, com alguma pressa que conduzimos pela estrada do Atlântico com mar e céu azul, parando para a fotografia obrigatória na ponte dramática em curva inclinada que se vê nos anúncios da volvo.
Cansados da intensidade dos últimos dias, chegámos ao fim da tarde à cidade e inquirimos com alguma dificuldade sobre a morada que tínhamos. Quando finalmente nos aproximávamos do local, ainda apanhámos o H. que avistámos a descer a rua com uma inconfundível mochila de campismo às costas. Estacionámos a nossa carrinha de ciganos em frente à casa da G. que nos veio cumprimentar ao jardim, enquanto os vizinhos deste subúrbio tranquilo nos espreitavam desconfiados por cima das sebes verdes. Sempre bem disposta, levou-nos para o interior onde tinha à nossa espera uma deliciosa e quente sopa de tomate onde mergulhámos fatias de ovo cozido e pão.
Nessa noite (que, como já referi, deixou definitivamente de ser escura), ainda tivemos coragem de ir conhecer um pouco o ambiente urbano nocturno de Trondheim. Apesar de já ser bastante tarde (e Domingo) ainda dançámos e bebemos um pouco no Familien, a conselho da G.


06.06 - 08.06
1060 km
Aurlandsfjellet-Sognefjellet-Hjerkinn-Geiranger-Trollstigen-Ålesund-Myrbærholmen-Kristiansund-Trondheim
Fotos: R. Keys | Canon EOS 550D

12 agosto, 2012

Ciganos na Noruega | Capítulo 2


[R. Keys] Canon EOS 550D

Dirigimos-nos a Pulpit Rock, perto de Stavanger. Apesar do R. se ter andado a queixar ultimamente de umas dores num dos pés (o que era o pretexto ideal para se escapar a algumas das tarefas mais chatas exigidas pelo campismo) ia na frente quando enveredámos pelo meio de mato e calhaus juntamente com muitos outros turistas de aspecto atlético para subir um percurso de quase 2 horas (3,8km) que nos levaria ao cimo do fiorde (604m). O nome do local advém de uma pedra enorme que se atinge no fim do percurso e que se encontra perigosamente empoleirada no cimo duma escarpa, debruçada sobre uma paisagem avassaladora, tornada ainda mais espectacular pelo céu carregado em vários tons de cinzentos escuros. As grandes e dramáticas arestas graníticas afiadas de todo o cenário conferiam um geometria e austeridade ao conjunto que se contrapunha à pequena escala humana que formigava na paisagem.

Como sempre, a Teresa, a menos atlética do grupo, foi ficando para trás, ofegante e transpirada. Por duas vezes desviou-se involuntariamente das setas vermelhas e dos sinais que indicavam o caminho certo, qual cabra montanhesa a trepar escarpas e a saltar de pedra em pedra durante duas horas e a um ritmo, para ela, bastante acelerado. Todo este conceito a que chamavam “hiking” (para o qual até tinha as botas merrell adequadas, sem o saber) com todos os noruegueses e estrangeiros super equipados e super desportivos, era novidade.

Pelo caminho, à medida que me distanciava dos outros, encontrando-os mais à frente a mergulhar num lago gelado sob umas nuvens ameaçadoras, distraí-me e fui pausando para tirar algumas fotografias.
Umas 4 horas depois reunimo-nos novamente junto da carrinha, transpirados e sedentos. A questão que se punha agora era: pagamos ou não pagamos as 100 coroas de estacionamento? Não nos apetecia muito, já tínhamos uma multa de estacionamento por termos largado a carrinha num lugar perfeito, vago, mesmo em frente da Ópera em Oslo... Foi assim que começou o nosso historial de ciganos na Noruega, o que se pudesse poupar, poupava-se!
O T. sentou-se ao volante e preparou-se para acelerar atrás do carro que pagava o estacionamento na máquina antes da cancela. No último instante, hesitou e a cancela desceu. Deu-lhe um pequeno ataque de fúria francesa, virou o volante todo à direita e, antes que nos apercebêssemos do que fazia, subiu o passeio e fez passar a carrinha entre as barreiras e um calhau enorme enquanto nós nos encolhíamos todos nos assentos, de boca aberta, com todos os outros turistas a olharem para nós. Desaparecemos a acelerar.



Canon AE1 | FujiColor 800 ASA

Talvez uma hora depois, encontrávamo-nos a conduzir por montes verdes e túneis escuros, estradas serpenteantes de duas faixas. Após alguns dias de condução, chegámos à conclusão de que a Noruega não conhecia o conceito “auto-estrada”. Mas pagavam-se portagens na mesma. Havia estradas que até terminavam abruptamente na pista de entrada de um ferry para serem depois retomadas na outra margem.
O tempo continuava húmido e cinzento. Viam-se fios de água a cair em cascata pelas encostas dos fiordes anunciando o descongelamento dos últimos restos de neve. Foi numa das curvas da estrada que nos deparámos inesperadamente com o primeiro elemento que identificámos como fazendo parte dos “Nasjonale turistveger” - Svandalsfossen. Uma cascata enorme e barulhenta que pulverizava tudo em redor descia do nosso lado esquerdo e atravessava-se por baixo da estrada, indo de encontro à agua. Um conjunto de escadas e pontes em betão, aço cortén e pedra acompanhavam o seu percurso, permitindo chegar muito perto. Descemos às pedras e trepámos pelo meio das árvores, descobrindo os ângulos e pontos de vista retorcidos que nos permitiam observar a cascata natural.





Canon AE1 | FujiColor 800 ASA

Uma das características da paisagem norueguesa é a transitoriedade do seu clima, à medida que se avança pelo território. Houve alturas em que rapidamente, em menos de uma hora talvez, deixávamos para trás a água límpida de um fiorde com os seus campos verdes, céu azul e 20ºC ao sol para subirmos ao nevoeiro e autênticas muralhas de neve que ladeavam as estradas no topo das montanhas. O M. vestia os calções de banho a pensar em dar um mergulho cá em baixo e depois saía do carro lá em cima e ficava enterrado em neve, as perninhas expostas.

A chuva acompanhou-nos enquanto abandonávamos a cascata e continuámos a conduzir até bastante tarde. Enquanto houvesse luz, não era urgente parar para montar acampamento. O local que acabámos por escolher nessa noite junto a um lago meio pantanoso foi dos menos bons, mas o prato quente de arroz com courgette, cenouras e passas estufadas que eu e a E. cozinhámos (as refeições caíam sempre à responsabilidade das meninas) compensou. Na manhã seguinte acordámos cedo, deviam ser 8h, e com muitas vozes à nossa volta. Quando um objecto pesado caiu num dos lados da tenda, o T. abriu a porta furioso e deparou-se com uma turma de uns 25 miúdos. Estavam numa excursão de bicicleta e preparavam-se para meter umas canoas na água. Foi pretexto para nos pormos rapidamente a andar dali para fora. Gradualmente fomos ficando melhores e mais rápidos a levantar e arrumar o acampamento e para o fim da viagem já se faziam competições entre os rapazes para registar recordes para a operação de desmontagem da tenda grande.




[R. Keys] Canon EOS 550D

Voltámos aos fiordes de águas azuis e verdes, o dia alternava entre a chuva e o sol. Conduzimos muito, atravessámos montanhas onde ainda caía neve, passámos por algumas “casas de banho de interesse arquitectónico”, apanhámos alguns ferries (eu e a E. escondíamo-nos no meio das malas para evitar pagar mais umas tarifas desnecessárias) e chegámos a Bergen, já a tarde ia adiantada. Na cidade, conseguimos finalmente comprar a publicação com o resto do roteiro onde surgiam as peças arquitectónicas que nos interessavam.
Bergen é um destino super turístico. Demos uma volta, um sítio bonitinho, arranjadinho e pequenino, com muitos chineses, mas rapidamente nos cansámos e quisemos voltar à estrada e à natureza. Nem me sentia bem a andar em ambiente urbano, digamos que 5 noites de campismo selvagem já se reflectiam no meu aspecto. Ainda parámos num café porque os rapazes se queixavam que precisavam de wi-fi nos iphones (são perfeitamente dependentes do facebook, apesar de insistirem que precisavam de responder a emails importantes) e o T. pagou o lanche mais caro da sua vida – 16€ por um café e uma fatia de bolo e nem conseguiu apanhar internet!

Julgo que foi por esta altura que começámos a fazer muitos quilómetros por dia. A maior parte desta viagem limitou-se a ficarmos sentados na carrinha a ver desfilar paisagens lá fora, de vez em quando saltando para fora para mais um ponto de paragem arquitectónico. Era o fim de terça-feira, dia 5 de Junho, e tínhamos de estar em Trondheim na sexta-feira para nos encontrarmos com o H. Ainda havia muito para ver e a intensidade dos dias aumentou.
Conduzimos até muito tarde, a paisagem mudou, os túneis tornaram-se mais compridos, as escarpas de rocha altas e rectas substituíram as encostas e os vales verdes – de alguma forma a sua presença parecia mais próxima e a nossa escala bastante reduzida.
Parámos para passar a noite num sossegado parque de campismo, perdido nesta paisagem monumental. A E. fazia anos no dia seguinte e o seu desejo de aniversário era tomar um duche. Jantámos na minúscula cozinha do local perto da meia noite, brindámos, conversámos um pouco e discutimos o dia seguinte.



04.06 - 05.06
640 km
Pulpit Rock [Preikestolen]-Svandalsfossen-Bergen-Aurland