18 agosto, 2012

Ciganos na Noruega | Capítulo 3



O dia de anos da E. foi um bom dia para (quase) todos. Começou inundado de sol.
Decidimos subir às montanhas e procurar o melhor spot possível para prepararmos o brunch matinal. Os rapazes tinham comprado alguns frescos e ingredientes extra na véspera para surpreenderem a E. Na subida, parámos num dos pontos altos do itinerário que agora seguíamos atentamente pelo livro – a ponte projectada sobre o fiorde em Stegastein. Por sorte, àquela hora, os turistas ainda não tinham inundado o sítio e demorámo-nos a tirar fotografias. Seguimos, sempre a subir, a paisagem ficou branca de neve. Era impressionante a altura que atingia nas bermas da estrada, algumas das “casas de banho arquitectónicas” estavam mesmo inacessíveis, enterradas debaixo da neve. Parámos no miradouro em Vedahaugane para prepararmos um brunch branco de neve.




Entretanto, o M. tinha dado conta de que se esquecera da máquina fotográfica na ponte de Stegastein. Tirámos as caixas de comida e o equipamento que precisávamos para fora do carro enquanto ele voltava para trás, à procura da máquina (que foi dada definitivamente como desaparecida). As pessoas nos poucos carros que passaram por nós naquela manhã solarenga e amena ficavam incrédulos a olhar para quatro jovens relaxados, perdidos algures nas montanhas, a cozinharem bacon e ovos num fogão portátil, com imensa tralha a toda a volta e sem nenhum carro por perto.
Uma hora depois o M. regressou com a carrinha e voltámos à estrada. Descemos a grande velocidade pelo asfalto sinuoso, nunca adivinhando o que estaria para lá da curva apertada com a visibilidade cortada pelas muralhas de neve. Novo ferry, novo fiorde, águas transparentes, muito convidativas. Ainda testámos com o pézinho a temperatura da dita, mas rapidamente mudámos de ideias. De novo a trepar as montanhas, desta vez chegámos a Nedre Oscarshaug, Sognefjellet, onde um elemento de vidro giratório montado numa estrutura metálica permitia observar e saber a altura das montanhas circundantes, as mais altas da Noruega. Era uma peça bastante elegante.


A meio da tarde, estacionámos no último ponto marcado no percurso daquela região, o parque de merendas de Liasanden, e discutimos novamente o rumo a tomar enquanto o nosso fiel primus amarelo aquecia água para o chá das cinco. Punha-se a hipótese de fazer um pequeno (grande) desvio para Este para visitar o Reindeer Pavilion dos Snøhetta. Era uma obra muito pequena e estávamos na dúvida se valeria o esforço, nunca voltaríamos a estar tão perto. Penso que, no fundo, nós os quatro, os interessados em arquitectura, tínhamos a certeza de que queríamos lá ir. Apenas o M. divergia – tinha de acabar e enviar um trabalho para a faculdade dele ainda nesse dia e optou por ficar em Lom, no parque de campismo, de onde partiríamos na manhã seguinte de acordo com o itinerário estabelecido no livro das rotas turísticas.
Não sabíamos muito bem onde ficava a obra. Apenas tínhamos retirado do Archdaily uma morada e colocado no Google Maps para ficarmos com uma ideia. Mas estávamos conscientes de como isto poderia correr mal.
Conduzimos durante talvez uma hora e meia. Ninguém conhecia o pavilhão, nem no centro de turismo de Lom, nem num acampamento de treino militar a escassos 2 ou 3km do sítio que procurávamos. Não se viam árvores e os montes ainda continham restos de neve no meio duma paisagem áspera e vazia, dominada pelos castanhos e verdes secos de uma vegetação muito rasteirinha. Demos com uma zona com cartazes informativos e uns poucos carros estacionados junto ao início de um percurso pedestre. Sem sabermos se o caminho nos levaria até ao sítio pretendido, empreendemos marcha. Após 1,5km avistámos, com entusiasmo crescente, a construção a delinear-se no horizonte à luz branca dum fim de tarde nublado.


Uma caixa de aço da cor da paisagem. A entrada, uma parede ondeante de troncos de madeira dispostos horizontalmente, esculpidos. No interior, a distorção da parede de madeira cria uma pequena bancada que remata ao fundo num movimento que envolve o fogão preto suspenso. A face oposta do paralelepípedo é inteiramente envidraçada, espelhando a paisagem. Pequenos prumos metálicos escuros seguram os vidros ao nível do chão, reflector, permitindo a apreciação total e sem interferências do exterior, evaporando-se a fronteira entre um e outro ambiente.
Experimentámos a porta, duvidando da nossa sorte, e ela abriu-se, convidando-nos a entrar. Sentimos o ar morno do interior ao mesmo tempo que o nossos ouvidos eram inundados de várias vozes alegres. Muitos olhos azuis suspenderam as conversas e fitaram-nos. Um grupo de seniores (todos certamente reformados) estavam sentados nas bancadas em torno do fogão e conversavam animadamente. Equipados desportivamente, com botas de montanhismo e apetrechados com o thermos do café e um par de binóculos cada, eram os membros do Reindeer Club que ali estavam no último encontro da estação. Sejam bem vindos! Curiosos e hospitaleiros, dirigiram-se-nos num inglês hesitante enquanto uma senhora sorridente nos distribuía bombons de chocolate. Eram todos habitantes duma localidade próxima e quiseram saber de onde vínhamos. Estavam muito orgulhosos do seu novo observatório, “acho que até ganhou um prémio”, disse alguém.
Sentámos-nos e ali ficámos, calados, durante bastante tempo, as vozes dos nossos amigos noruegueses a acompanharem os nossos pensamentos. Em frente, erguia-se a montanha Snøhetta. Toda a força deste pequeno objecto arquitectónico dirigia-se à paisagem, o resto contribuía para o conforto de quem assistia ao cenário exterior. Quase que podia vê-las, às renas, disfarçadas na minha imaginação naquela paisagem malhada e despida. Que sorte estar aqui. Apesar de ter registado mentalmente pequenos aspectos da construção (sobretudo as grandes peças de madeira que nunca tinha visto ser trabalhada daquela forma), demorei-me especialmente a usufruir do espaço para o efeito para o qual tinha sido projectado – enquanto observatório. Quando finalmente nos decidimos arredar dali para fora (com mais uns chocolates nos bolsos) o único comentário que se fez referia-se ao facto de termos deixado o M. para trás... senão, poderíamos ter passado aqui a noite, num lugar incrível.




Ainda dentro dos horários convencionais (que em poucos dias seriam completamente subvertidos), acordámos de manhã no dia seguinte, arrumámos e saímos, esquecendo (?) de pagar a noite no parque de campismo. Espreitámos a bonita igreja de madeira local e juntámo-nos aos outros turistas que começavam a rastejar molengamente pelas estradas. Parámos mais à frente num engarrafamento de roulottes causado pelo avistamento de uma manada de renas e à hora de almoço já nos encontrávamos num dos fiordes mais concorridos com os seus ferries de cruzeiro gigantes (pequeninos nestes montes) a conferir escala ao vale. Evitámos atropelar os turistas ricos com os seus chapéus de palha e óculos de sol que tentavam trepar até ao miradouro e desesperámos atrás dos autocarros que roncavam em primeira enquanto escalavam as estradas apertadas.
Ainda não nos tínhamos visto livres das enxurradas de turistas que os autocarros despejavam quando chegámos ao novo café (já a funcionar, mas ainda em fase de acabamentos) de Gudbrandsjuvet. Mais uma vez, uma série de pontes e percursos sobre uma cascata levava ao local que ficava escondido no meio da vegetação tranquila e com vista privilegiada sobre a corrente de água. A grande diversidade de materiais (sempre num registo natural e neutro) e alguns motivos divertidos integrados na construção conferiam algum dinamismo e interesse às diferentes situações que se atravessavam no interior (de dimensões bastante reduzidas) e no exterior.

O momento alto do dia pelo qual esperávamos chegou pouco depois - o conjunto de Geiranger-Trollstigen.
Tudo brilhava, tudo reflectia luz. O manto branco, ainda espesso, que cobria as montanhas diluía-se nos canais e piscinas que ajudavam a reflectir a luz solarenga ao longo dos percursos, acompanhados pela cantilena de água a fugir. No fim do caminho, tal como um lagarto ou uma iguana com a cabeça e as patas esticadas em diferentes direcções, um miradouro agarrava-se, rasteiro, à encosta da montanha, atrevendo a empoleirar a cabeça no vazio. Lá em baixo, a estrada estreitinha arrepiantemente sinuosa parecia convergir com os fios de água prateados que desapareciam no vale verdejante. [que poder metafórico!]
Foi, sem dúvida, um dos meus cenários preferidos.
Tirámos à sorte quem seria o afortunado a levar a cabo o rally pela referida estrada abaixo, calhando a tarefa ao francês que propiciou um momento de verdadeira adrenalina de alta velocidade e que, pelo menos da minha parte, provocou gritinhos iiiiiiihhhhh e alguns pensamentos catolicistas como ai-jesus-que-se-vem-alguém-a-subir-morremos-aqui.





Nesse fim de dia, aportámos em Ålesund para umas cervejas ao sol num pequeno cais e encontrámos, a escassos quilómetros da cidade, um campo junto ao mar onde passar a noite. Acendeu-se uma fogueira e comemos salmão roubado (obra da E.) com knäckebröd trazido da Suécia enquanto esperávamos pelo escuro que substitui o sol e que, nessa noite, não veio mesmo.


Domingo, dia 8 de Junho, tínhamo-nos comprometido estar em Trondheim para acolher um novo membro que chegava nessa tarde de Estocolmo. Para além disso, tínhamos uma anfitriã que nos esperava para nos dar guarida ao fim do dia. Foi, portanto, com alguma pressa que conduzimos pela estrada do Atlântico com mar e céu azul, parando para a fotografia obrigatória na ponte dramática em curva inclinada que se vê nos anúncios da volvo.
Cansados da intensidade dos últimos dias, chegámos ao fim da tarde à cidade e inquirimos com alguma dificuldade sobre a morada que tínhamos. Quando finalmente nos aproximávamos do local, ainda apanhámos o H. que avistámos a descer a rua com uma inconfundível mochila de campismo às costas. Estacionámos a nossa carrinha de ciganos em frente à casa da G. que nos veio cumprimentar ao jardim, enquanto os vizinhos deste subúrbio tranquilo nos espreitavam desconfiados por cima das sebes verdes. Sempre bem disposta, levou-nos para o interior onde tinha à nossa espera uma deliciosa e quente sopa de tomate onde mergulhámos fatias de ovo cozido e pão.
Nessa noite (que, como já referi, deixou definitivamente de ser escura), ainda tivemos coragem de ir conhecer um pouco o ambiente urbano nocturno de Trondheim. Apesar de já ser bastante tarde (e Domingo) ainda dançámos e bebemos um pouco no Familien, a conselho da G.


06.06 - 08.06
1060 km
Aurlandsfjellet-Sognefjellet-Hjerkinn-Geiranger-Trollstigen-Ålesund-Myrbærholmen-Kristiansund-Trondheim
Fotos: R. Keys | Canon EOS 550D

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