08 agosto, 2012

Ciganos na Noruega | Capítulo 1


21 dias, 7600km, 24h de sol, 6 duches.

No último dia de Maio partimos. Juntos, mais uma vez, adiando despedidas e promessas de reencontro para dali a um mês. Junho, tínhamo-lo na mão.

Com menos de uma semana para prepararmos 21 dias de viagem, os primeiros tempos foram de experimentação e organização. Falta isto, aquilo não funciona, uma hora para pôr a tenda em pé, tudo a voar para fora da carrinha, coisas já dadas como desaparecidas... ordem, ordem, ordem!

Confiando nas direcções do Google Maps, conduzi para fora de Estocolmo uma carrinha com 5 pessoas e respectivas bagagens acumuladas durante um ano em erasmus. Na primeira oportunidade, e também à medida que mais pessoas se juntavam ao grupo, fomos sacrificando material desnecessário. A carrinha passou a ser a nossa casa, não tínhamos outro refúgio a não ser as tendas e o conforto dos assentos. 21 dias ao ar livre, alguns passados a dormir debaixo de chuva, outros debaixo da claridade nocturna do sol do Norte.

O primeiro destino: Oslo. Tínhamos dois dias para lá chegar, o encontro com o T. estava agendado para Sábado, às duas da tarde, na Ópera. Parámos então a meio caminho para passar a noite e surge logo uma discussão que se repetiria praticamente todos os dias: onde acampamos? ‘Já é tarde’ ou ‘hoje quero tomar duche’ eram desculpas para seguir para um parque de campismo, mas desde cedo que as começámos a ignorar porque todos os dias eram cada vez mais tarde e os duches, miragens em terceiro ou quarto plano.

Mas a discussão continuava: aqui o terreno não é plano, não é fofo, há vento, não há lenha, está tudo molhado, não se consegue estacionar, tem mosquitos, está demasiado exposto, ... enfim, não é bonito. Queremos um bom sítio para passar a noite, estamos na Noruega! Um país conhecido pelos seus cenários naturais incríveis. A maior parte das vezes, depois de voltas e desvios, encontrávamos o sítio que procurávamos, é aqui!

[R. Keys] Canon 550D

Por sorte, logo na primeira noite, enquanto conduzia por trilhos florestais na demanda pelo spot perfeito, tivemos o nosso primeiro contacto com a fauna selvagem nórdica. Encontrávamo-nos ainda em solo sueco, na zona de Hammarö, perto de Karlstad. Cuidado! Vai ali um alce aos pulos! Pára, pára! Olha outro! Olha uma raposa! Leva um bicho na boca... E ali ao fundo andam veados aos saltos! Um moosesafari completo em menos de 10 minutos... Demos a nossa demanda por bem sucedida e resolvemos acampar no parque de campismo local onde ainda nos debatemos durante uma hora com a tenda gigante laranja que trazíamos. Na manhã seguinte, depois de armazenarmos um mega carregamento de mantimentos, deixámos a Suécia de vez e só parámos em Oslo.

Apesar de não conhecermos a cidade e de termos gostado do pouco que vimos em dois dias (sendo a Ópera um ponto de paragem obrigatório não só para apanharmos o T., mas sobretudo por sermos um grupo de curiosos da arquitectura), estávamos desejosos de nos fazermos à estrada e deixar a vida urbana para trás. O intuito da viagem era conduzir muito e tentar chegar o mais a norte possível. Antecipávamos a nossa incursão nos territórios remotos noruegueses e fazermos um wild camping sério, como deve ser. Digamos que acampar em Oslo, mesmo que seja num parque junto a um lago (Sognsvann) a 10min de carro do centro, faz figura de acampamento de ciganos ou imigrantes...

Conhecemos uma amiga da S., a quem demos boleia até Oslo, que estudava arquitectura na cidade e que nos mostrou a escola. Para além disso também nos emprestou a casa de banho dela onde demos início à contabilização dos nossos duches. Mais uma vez, e como temos vindo a fazer nas nossas viagens, explorámos os cantos à faculdade. Estavam em entregas finais na AHO (Arkitektur- og designhogskølen i Oslo), pelo que tivemos um vislumbre dos últimos preparativos para as apresentações. As instalações eram relativamente recentes e bem equipadas e notava-se uma preocupação e detalhe na materialidade e espacialidade que caracterizava o edifício, algo bem diferente da nossa escola em Estocolmo. Talvez inspirados pelo ambiente circundante, ou influenciados pela cultura arquitectónica norueguesa, também os alunos trabalhavam em projectos muito claros em que o conceito adquiria uma expressão quase artística na sua interpretação física. As apresentações misturavam bons desenhos e maquetas bem executadas, não deixando de recorrer a técnicas e instrumentos variados e pessoais, conseguindo no entanto a harmonia do conjunto e sensibilidade na escolha de cores e materiais neutros, mas significativos.



Canon AE1 | Fuji Superia 200 ASA

Após duas noites de campismo junto ao lago em Oslo (onde lavámos loiça de cócoras à vista de todos os joggers citadinos que por lá exerciam o físico ao fim do dia) e depois de umas últimas cervejas nocturnas em ambiente urbano, era altura de empreender marcha. Chovia na manhã em que desmontámos o acampamento e subimos de carro ao Holmenkollen ski jump que alguém se lembrara dizer ser da autoria de Zaha Hadid (verifiquei na Wikipedia há dias, diz ser do gabinete dinamarquês JDS). Tirámos a foto mandatória e passámos a restante meia hora no pequeno café existente no vão da enorme estrutura a discutir o rumo a seguir. Para fazer as coisas como deve ser, deveríamos ir até à costa sul e, dali, ter a experiência inteira da subida para norte. De volta ao carro, traçámos no mapa o percurso que nos levaria até Kristiansand, cidade costeira no sul, onde por acaso demos de imediato com o inesperado Kilden Theatre & Concert Hall dos finlandeses ALA. Ainda não tínhamos conseguido imprimir nem comprar a publicação que se revelaria fundamental para o nosso itinerário durante aquelas 3 semanas – “Nasjonale turistveger” reunia um conjunto de percursos marcantes na paisagem norueguesa, de norte a sul, pontuados por pequenas intervenções contemporâneas de interesse arquitectónico-paisagístico como miradouros, percursos pedestres, pontes, wcs, cafés ou zonas de merendas. Inquirir acerca da “casa de banho arquitectónica” mais próxima passou a ser ritual de todas as manhãs.

Na aproximação a Kristiansand a paisagem mudou repentinamente à saída de um túnel e encontrámo-nos a atravessar uma ponte alta, cheia de sol, com uma língua de água lá em baixo entre dois montes verdes. Finalmente, os cenários prometidos começavam a surgir timidamente e imediatamente as máquinas fotográficas saltaram das malas. O ambiente no interior da carrinha também mudou, a música tocava bem alto, o sol entrava pelas janelas e as expectativas deixavam-nos animados. A grande velocidade, como aliás era sempre costume, entrámos na cidade e travámos a fundo em frente à cobertura ondulante do Kilden.



Canon AE1 | Fuji Superia 200 ASA

Deixámos pouco depois a preguiçosa e domingueira Kristiansand após uma pausa que deu para desenhar, fotografar, deambular no interior do Concert Hall, perder uma bola de futebol no canal, comer uma caixa grande de bolachas e conversar com um senhor norueguês que chegou de barco e disse ser músico. Estava curioso em saber qual o nosso objectivo tão a norte e adiantou-nos que se tivéssemos sorte com o tempo, veríamos o “midnight sun. And maybe have some midnight fun...” Dissemos adeus e seguimos em direcção a Stavanger. A tarde ia adiantada quando decidimos parar numa pequena vila e perguntar se haveria algum supermercado na zona, aberto. Dois noruegueses locais partiram-se a rir na nossa cara. Com um forte sotaque, aconselharam-nos numa próxima vez a escolher um “destino mais civilizacional.”

Descobrimos o céu azul, aberto, da costa. O sol já se punha e procurámos um sítio para acampar. Após algumas paragens em zonas com potencialidades para a prática do campismo e algumas excursões por campos e calhaus com rebanhos de ovelhas, decidimo-nos por um campo aberto de erva fofa debaixo da lua cheia. Os rapazes encontraram alguma lenha, apesar de não ver árvores nenhumas por perto, e eu e a E. abrimos a garrafa de Porto enquanto preparávamos o jantar. Ao outro dia de manhã, quando eu e o T. pegámos na loiça para a ir lavar a uma pequena enseada, descobrimos que uma fila de ovelhas se nos tinha atrelado, atraída pelo barulho dos tachos e talheres que o T. transportava. Ele andava, elas andavam. Ele parava, elas paravam. Ele olhava para elas e elas respondiam da mesma maneira.

Nesse dia, deixámos para trás a costa azul e verde com as suas vacas castanhas a pastarem junto à água e os celeiros vermelhos a pontuarem a paisagem plana. Apanhámos o nosso primeiro ferry e não resistimos a vir cá fora espreitar a paisagem montanhosa debaixo de um céu carregado. O barco cheirava a óleo.


[R. Keys] Canon 550D


31.05 - 04.06
1080 km
Stockholm-Hammarö-Oslo-Kristiansand-Stavanger

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