30 setembro, 2012

Ciganos na Noruega | o norte acaba aqui.


Só existe uma estrada.
Lá bem em cima, a rota é certa. Não há desvios, não há alternativas e o único cruzamento que vimos foi motivo para parar e tomar uma decisão difícil: Nordkapp? Mas antes mesmo dessa estrada solitária onde os únicos sinais de vida são as manadas de renas e antigas cabanas sami, antes disso, ainda há as escarpas de Andøya, o brilho de Senja e o surrealismo de uma cidade chamada Tromsø.
Já na zona norte de Lofoten, encontrámos finalmente um parque de campismo com duche e kitchnette onde descansar. Montámos a tenda no meio das caravanas que por ali estavam estacionadas, não se viam mais campistas, e jantámos sopa quente na praia tranquila mesmo em frente, com o recorte das montanhas bicudas a entrarem na água em pano de fundo. No dia seguinte, eu a E. deambulámos preguiçosamente pela pequena vila enquanto o resto do grupo participava num whale safari. Supostamente, a poucos quilómetros da costa existiria um dos melhores spots no mundo para a observação de alguns tipos de cetáceos. E os locais sabiam disso, tirando partido nos preços que exigiam. Isso e a minha inaptidão para aguentar os balanços de um barco em acção, resolveram a questão. Mais tarde vimos as fotos todos juntos: espirros de água e uma cauda de fora que me fazia lembrar o anúncio aos Açores repetiam-se vezes sem conta.
A meio da tarde apareceram a acelerar.
Temos de desmontar o acampamento! O último ferry parte daqui a meia hora!
O tempo começara a pressionar-nos. Contávamos os dias e os quilómetros que ainda nos faltavam para atingirmos o nosso objectivo mais a norte: o memorial de Zumthor às bruxas na cidade desencantada de Vardø.




Alguém me disse que o ferry levaria meia hora. Decidi ficar no convés a respirar nervosamente o vento gelado que sacudia o meu cabelo. O barco balançava e eu estava consciente disso. Disso e de que já não tinha mais comprimidos para o enjoo. O tempo estava cinzento e por mais que esforçasse os olhos não conseguia discernir terra no horizonte. A meia hora acabou por ser uma hora e meia ao fim da qual, mais calma por estarmos a entrar numa pequena baía pontuada pelas características casinhas piscatórias norueguesas, o francês foi dar comigo toda enregelada na proa do barco. Aparentemente, durante esse tempo, o H. tinha sofrido um pequeno acidente por exaltação de ânimos aquando do anúncio de que um grupo de golfinhos se nos tinha juntado, acabando por partir a cabeça.
Olhei horrorizada para o francês. Tás a brincar. O quê???
O H. estava sentado numa cadeira junto ao comandante, na ponte, a olhar fixamente para a pequena vila onde entrávamos. Duvidei logo pela sua expressão apática sobre a sua saúde mental. Pelo menos ainda ia falando.
Mal desembarcámos começámos a seguir as direcções que nos haviam dado para o hospital mais perto, que ficava a cerca de uma hora de distância. O R. largou-nos num sítio pouco amistoso pelo caminho e seguiu com o paciente e a M. Apareceram por volta da meia noite, desta vez o sol tinha-se escondido por detrás de uma montanha, e o H. vinha animado com a atenção que recebera das enfermeiras norueguesas.
E se conduzíssemos mais um bocado?


[+/- 01:30h em Bergsbotn, Senja]


 [+/- 02:00h em Tungeneset, Senja]


[+/- 03:00h, algures onde as renas pastavam ao lado da praia]

Madrugada, sempre de madrugada. Conduzíamos debaixo daquele sol fortíssimo que nos cegava até encontrarmos o sítio perfeito para acampar. Era por isto que tínhamos vindo, pela paisagem.
O dia seguinte começou, para variar, com um brunch preguiçoso às duas da tarde e seguimos para Tromsø.
Ao fim da tarde, e depois de mais um fantástico túnel que terminava em rotunda subterrânea e que mentalmente adicionámos à nossa lista de "os mais espantosos túneis noruegueses", já nos encontrávamos pela cidade. Orgulhosamente, exibia em várias zonas referência à fábrica de cerveja local, a última mais a norte. Como viemos a descobrir, Tromsø tinha uma vida nocturna fervilhante durante o verão, e nós fizémos questão em tomar parte dela. Um misto de vila piscatória tradicional com bares onde se passava Michel Teló, loiras maduras de vestidos espampanantes verde alface, velhos lobos do mar podres de bêbados que caíam das cadeiras, caçadores de ursos polares e focas, pessoas disfarçadas de smurfs (?!) e de noivas tatuadas, pessoas de cor, homens musculados envolvidos em brigas mas mal acertando no que quer que fosse devido à alta taxa de alcolemia ingerida, ...
Tromsø é indiscritível.
E o melhor de tudo, é que é dia toda a noite. E vê-se de tudo ao vivo e a cores.
Dançámos, bebemos, divertimos-nos e acabámos a noite a devorar fatias de pizza da Seven Eleven (há quanto tempo não se via uma!) antes de regressarmos ao carro para conduzir mais uma hora até encontrar um campo onde literalmente aterrámos. Estava tudo ainda meio bêbado, a tenda mal se segurava em pé.
Quando acordei, estava deitada no meio do campo verde, ao sol e com um vento bom a refrescar-me a memória da tenda quente e pegajosa. Sem óculos e com um zumbido da ressaca nos ouvidos, olhei para o mundo desfocado à minha volta e senti que tinha regressado de um sonho para cair noutro.
Um mergulho no lago frio ali perto acabou por me despertar.



Tundra.
Foi o R. o primeiro a falar-me disso. É um tipo de paisagem caracterizado pela ausência de árvores devido ao congelamento persistente do solo que impede o desenvolvimento da vegetação. No Ártico, este fenómeno reflecte-se na paisagem castanha da planície, onde as renas sobrevivem à custa de arbustos rasteiros e o musgo que cobre todas as superfícies. Mesmo em Junho, vimos grandes areas congeladas. O termo deriva da palavra russa empregue pelos samis antigos da região. Gosto da fonética de tundra. Para mim, tudo o que vimos na única estrada do norte foi tundra.
Começou a chover muito. Procurámos um parque de campismo onde nos refugiar, mas os dois que visitámos eram extremamente hostis. Não estávamos propriamente numa zona turística. Desconfiados, sem ver ninguém, mas sabendo que éramos observados, acabámos por montar acampamento numa zona de repouso junto à estrada. Logo pela manhã, alguém muito zangado e relativamente ameaçador mandou-nos embora.
Conduzimos até Vardø. A paisagem junto à costa era agora não menos vazia, mas mais misteriosa com os seus bancos de névoa a pairar sobre um mar que já não era tão tranquilo como o que víramos dias antes. Aqui ouviam-se as ondas a rebentar, os sons distorcidos e abafadas pelas neblinas.
A vila de Vardø era simples e sem nenhum interesse especial. Algumas construções de madeira apodrecidas, outras mais recentes de tijolo e betão. Uma igreja branca dominava o ponto alto da vila e umas estradas largas onde não passava ninguém levavam a um porto com embarcações árticas de grande porte. Apesar de tudo, tinha um posto de turismo e obtivemos as indicações para o memorial das bruxas. Aproveitámos também para pedir indicações sobre o caminho... de regresso.
Afinal, a obra de Zumthor era já ali ao lado, nas traseiras dumas construções pobres de habitação. O sítio, com a sua descaracterização natural e urbana, não impressionou. Mas a obra em si afirmava-se como um elemento simultaneamente sólido e volátil. Entrar no longo corredor suspenso de tela preta pontuado por luzes da cor do fogo e ocasionais quadrados de luz branca e crua vinda do exterior é uma experiência quase espiritual. Ao longo desta estrutura, estão catalogados todos os casos de condenação por bruxaria e feitiçaria que o local testemunhou na Idade Média. E foram muitos. Está tudo criteriosamente documentado nas paredes frias de tela preta por onde se sente o vento a assobiar. É um ambiente estático. Um memorial na paisagem.
O norte acaba aqui.






14.06 - 18.06
Lofoten-Andøya-Senja-Tromsø-Alta-[pertíssimo do Nordkapp]-Vadsø-Vardø
1370 km

[Nota: A viagem de regresso começou mal abandonámos Vardø e apenas entrámos em Estocolmo na noite de dia 20. Atravessámos o norte da Finlândia e perfizemos o total de 7 600 km quando demos a viagem de 3 semanas por terminada. Com alguns percalços, muito cansaço e alguns momentos de insanidade mental após uma directa a conduzir, ainda houve tempo para uma última sauna na Lapónia sueca enquanto desejávamos avidamente uma cama e um chuveiro. A tenda laranja, essa ficou enrolada nas últimas duas noites. Após 18 noites tinha-se finalmente esgotado a coragem para acampar.]

29 setembro, 2012

Ciganos na Noruega | Capítulo 4



Mexilhões. Sim, mexilhões!
Mexilhões ao pequeno almoço acabadinhos de "pescar" pelo H. que garantiu estarem frescos e consumíveis. Eu e a E. torcemos o nariz (e com alguma razão a julgar pela careta do T. quando experimentou o petisco) e ficámos-nos pelo café do costume. A última coisa que pretendia era uma diarreia no mato...

O H., que nos acompanhou desde a saída de Trondheim, fitava hipnotizado os cenários do outro lado da janela do carro. "Ah, olha, desculpa lá, mas esta parte do caminho vai ser um bocado chata que não há nada para ver". Nós avisámos. E ele olhava para nós sem compreender. "A paisagem é espantosa", dizia ele.
Trocávamos olhares. Hmm. Pois. Havias de ter visto o que vimos nesta última semana...!
O descanso em Trondheim marcou o fim da primeira etapa. Acampados no jardim da G., acordávamos tarde, tomávamos o brunch ao sol, a casa por nossa conta. Descalços e de pijama, saíamos dos sacos de cama para nos deitarmos a aquecer na relva em frente à casa. Tivemos direito a uma visita guiada à cidade e cozinhámos em agradecimento pela hospitalidade uma espécie de risotto. A G. levou-nos ainda num longo passeio para nos mostrar o seu lago secreto onde me vi obrigada a mergulhar nas águas escuras e geladas (não tanto como as que ainda viria a descobrir nos dias seguintes) da floresta ao fim da tarde.
Não conhecia a G. E eles pelos vistos também não. Apercebi-me disso quando perguntou-nos a todos o que estudávamos. No fundo, todos a conheciam, mas na realidade... não. Como vim a saber mais tarde, apenas se tinham encontrado em Estocolmo por duas vezes. Ela sabia falar 7 línguas, já tinha vivido em Itália e em Buenos Aires, era descendente de mãe holandesa e pai norueguês, tinha apenas uns 20 anos e tocava piano e cantava numa banda. Falou-me do Stockholm Lisboa Project que desconhecia e surpreendeu-me com algumas palavras em português que apanhara nalgum fado. Era uma pessoa eternamente sorridente e afável e ficou-nos muito agradecida pela ajuda que lhe demos na última noite com umas traduções para as nossas respectivas línguas de um conjunto de menus de um restaurante italiano de uma amiga. A sessão arrastou-se durante horas e pelo canto do olho vi os olhares desesperados que o R. lançava em todas as direcções enquanto puxava pelo cabelo. "Worst drinking game ever" foi como catalogou o serão.





Back on the road.
De volta aos nossos hábitos de ciganagem.
O momento alto desta parte do trajecto foi o avistamento de um glaciar. Ou melhor, foi a emoção da portuguesa ao finalmente ver um glaciar, o que foi motivo para uma sessão de fotografias da portuguesa a fotografar o seu primeiro glaciar.
Após uma noite acampados junto a um lago onde a comunidade mosquiteira proliferava abundantemente, descobrimos na noite seguinte uma praia de sonho. A luz dramática que iluminava tudo a partir de um céu carregadíssimo rasgado por dois, três e quatro arco-íris simultâneos que nos fascinou, durou o tempo suficiente para montarmos o acampamento e corrermos praia acima e praia abaixo. Brevemente correríamos para dentro da tenda afugentados pelo lençol de água que caía do céu. Areia, vinho entornado, roupas molhadas, e o vapor do jantar ao lume - tudo convergia naquele espaço diminuto de plástico laranja.
No dia seguinte chegávamos a Bodø. A entrada em cena da M. e do Th. trouxe toda uma nova dinâmica aos acontecimentos que se desenrolaram a partir daqui. Gente fresca! Novas ideias! Novos risos!
Há 3 dias que não tomávamos banho (a não ser os banhos de chuva) e eu e o R. tínhamos sacrificado nessa manhã os nossos colchões de princesa pelo bem estar do espírito colectivo dentro da carrinha. Ficaram na praia de sonho, não havia espaço.
Antes mesmo de aterrarem as novas visitas, ainda foi necessário um pequeno detour para se proceder a uma despesa pouco bem-vinda. Um novo pneu. Para substituir o que tínhamos furado ao passar a ferro uma rocha na berma da estrada no dia anterior. Continuo sem querer acreditar que tivemos mesmo de comprar um pneu norueguês, a custo norueguês.
Já com a M. e o Th. dentro da carrinha, pusemos-nos em fila para o ferry para Lofoten. Como a viagem era bastante concorrida, esperámos umas boas horas, aproveitando para sacudir e secar a tenda enquanto fazíamos um lanche junto à fila de caravanas e turistas.








Chegados à península da "Pata de Lince" (Lofoten), o primeiro sinal que se recebe da actividade daquela zona geográfica é o intenso cheiro a peixe. A península tresanda a peixe seco. Qualquer lado onde se vá, cheira, nem mais nem menos, a bacalhau. Tive alguma dificuldade em fazer perceber aos meus amigos porque é que o nosso prato nacional é um peixe da Noruega, mas acho que acabaram por reter a informação. A palavra aprenderam decerto. "Bácáláo, bácáláo"...
Os estendais de bacalhau e de cabeças de peixe encontravam-se em todo o lado. Percorrer as galerias era quase macabro, estava tudo morto, pendurado e acabado. Vazio e perdido na paisagem de rocha e montanhas.
Foi numa encosta perto de um desses cemitérios de peixe que passámos a primeira noite em Lofoten com as gaivotas zangadas a grasnar a toda a hora. Não cheguei a perceber porque não atacavam os estendais, calculo que o peixe já estivesse demasiado salgado para elas.
Os novos amigos do R., um casal de namorados noruegueses que fazia uma viagem semelhante à nossa mas de mota, fizeram-nos companhia nessa noite e na seguinte. Conversámos e bebemos até de madrugada, animados pelo aumento significativo do nosso grupo. A M. e o Th. foram logo instruídos no funcionamento do acampamento e, na manhã seguinte, tomávamos banho no lago arrepiante que ficava ali em frente, no vale formado por duas montanhas ainda com restos de neve.
O que mais me surpreendeu em Lofoten foram as praias paradisíacas de águas turquesas e areias finas e brancas que eu não fazia ideia de existirem tão, tão, tão a norte. Num único enquadramento (e porque não pintá-lo debaixo do sol da meia noite?) podia-se ver as montanhas rochosas com neve a suavizarem-se junto aos campos verdes com ovelhas a pastar que por sua vez se esfumavam na praia e no mar.
Foi na noite seguinte que comemorámos o nosso primeiro e credível sol da meia noite. Montámos o acampamento numa praia, mais uma vez, e cozinhámos raclette que o Th. havia trazido e que ao segundo dia na arca frigorífica já libertava um certo senhor odor. Esta noite meia surreal passada na praia com o sol a baixar e logo a levantar-se antes sequer de bater na linha de horizonte terminou muito tarde, por volta das 5 ou 6 da manhã, quando as nuvens que então apareceram determinaram uma escuridão aprazível para o sono. Bebemos em demasia, sinto que a noite foi mesmo uma comemoração, e pelo meio de conversas, gargalhadas e intimidades houve uma ida de grupo a banhos nus e um concurso para averiguar quem detinha a melhor arma branca: se os suíços, com o seu canivete, se o norueguês, com a sua faca sami. Para isso, tentaram durante meia hora serrar com os respectivos instrumentos de corte um tronco gigante abandonado na praia. Facilmente se adivinha quem detinha maior vantagem. Apesar de os suíços terem feito um trabalho deveras notável.





+/- 00:00h


09.06 - 13.06
980 km
Trondheim-Mo i Rana-Hellåga-Ågskaret-Storvika-Bodø-Lofoten
Fotos: acabados os filmes, virei-me para a minha velha e fiel Sony DSC H1.