19 janeiro, 2012

67º50' N


Quase que perdia o comboio.

Começa assim esta história de uma viagem à Lapónia, o destino final: cerca de 1 200 kms de caminhos de ferro para norte de Estocolmo até chegar a Kiruna - cidade mineira 145 kms acima do Círculo Polar Ártico. Poucos segundos depois de saltar para dentro do comboio às cegas, parti para o Norte.
O "expresso" da Lapónia é um nattåg, viaja de noite. Partilhámos a nossa cabine com uma médica sueca e um instrutor de ski da Nova Zelândia. A maior parte do tempo íamos colados às janelas do corredor, a nossa respiração a embaciar os fantasmas de neve que desapareciam lá fora, as mãos em concha à volta dos olhos à procura das auroras no céu limpo e carregado de estrelas. Quando parávamos nalguma estação deserta púnhamos a cabeça de fora no frio da noite. De vez em quando viam-se pequenas cabanas de madeira e pontos de luz perdidos na paisagem inóspita e gelada. A manhã revelou lagos e campos brancos tingidos de rosa a perder de vista. Duas renas pachorrentas depressa ficaram para trás.









Em Kiruna vieram-nos buscar e levaram-nos à nossa cabana de madeira a alguns quilómetros da cidade, no meio do mato e perto de um lago.
Apesar das temperaturas baixíssimas que o termómetro registava vesti toda a roupa que tinha e atirei-me para o meio do frio escuro da tarde. Entre tentar cortar lenha à machadada, deslizar num trenó improvisado com uma pá de neve e colocar uns esquis nos pés para tentar fazer não sei bem o quê, aquecemos-nos e divertimos-nos. De olho sempre à espreita das auroras passámos a noite à volta da fogueira numa cabana vermelha junto ao lago aconchegados em peles de rena.








Só à luz do dia seguinte é que me apercebi por onde é que me tinha andado a enterrar em neve na véspera.
Junto ao lago por cima do qual tínhamos andado a passear de noite a olhar para uma nebulosa com pretensões de aurora havia a sauna. Mal entrei, comecei a transpirar. O pior mesmo é conseguir respirar debaixo do que depois averiguei serem mais de 60ºC. Depressa se torna insuportável e o melhor mesmo é mergulhar nas águas geladas do lago... Isso ou correr e rebolar em fato de banho na neve!
A noite reservou-nos um passeio de trenó e huskies pela floresta negra adentro. De trilhos apertados entre ramos despidos onde não se via a curva à frente passávamos para lagos gelados que os cães atravessavam rapidamente mantendo uma velocidade constante nesta travessia nocturna. Os únicos ruídos: o swish do trenó de madeira a cortar a neve e a respiração ofegante dos 12 cães ocasionalmente repreendidos ou incentivados pelas palavras do condutor.
Com a cara gelada do vento, ia sentada na dianteira a escutar esta terra que já pertenceu ao povo sami. Tivemos ainda direito a uma sopa de salmão a meio do trajecto e, no fim, fiz festas, elogiei e agradeci a cada um dos meus amigos caninos.














Às 9h30 do dia seguinte introduziram-nos aos snow mobiles. O plano era seguir durante cerca de 10 kms em cross country até ao ice hotel. Claro que quis ser logo das primeiras a conduzir e, como é óbvio, aconteceram-me coisas como desviar-me da pista e atolar-me em neve fresca ou carregar no emergency brake sem querer e parar involuntariamente. Acabei à retaguarda com o resto da caravana à minha espera. Na vinda veio o Chico a conduzir.
A meio da tarde decidimos fazer uma fogueira no lago gelado e sentámos-nos com kebabs de rena e uma garrafa de Alvarinho a discutir a probabilidade do calor da fogueira derreter 30 a 50cm de gelo que formavam a superfície sólida do lago. Utilizámos ainda um drill para fazer uns buraquinhos redondos onde colocámos canas de pesca com chouriço de Miranda para aliciar os supostos peixinhos que alguém disse que haveria no lago.

Nessa noite já quase que tínhamos desistido das auroras que teimavam em não aparecer. Um vulto agitado que nos apareceu à janela à hora do jantar avisou-nos de que o fenómeno estava finalmente a acontecer! Saí (com menos roupa do que devia) e virei os olhos para cima. Aos tropeções e a correr fomos todos para o lago.
Uns arcos difusos e esverdeados cruzavam o céu. Tanto se dispersavam como se adensavam. "Parece que alguém está a atirar farinha", disse o Luís. Ou então a soprar fumo para o céu. As nebulosas agitavam-se, contorciam-se em espirais delicadas, às vezes quase que pareciam cortinas com ténues estrias verticais, focos esverdeados que caíam do céu. Por vezes ganhavam velocidade e deslocavam-se como uma onda comprida, outras vezes pareciam paradas.
Avancei sozinha pelo lago e distanciei-me das luzes e das pessoas barulhentas das cabanas. Não conseguia desprender os olhos do céu, senti que estava a assistir a algo único e irrepetível na minha vida. Lembrei-me das pessoas importantes para mim e pareceu-me plausível pedir àquele céu os desejos que não tinha pedido no ano novo. Rezar à natureza nunca fez tanto sentido.
Por este momento impressionante inclinei a cabeça perante a paisagem e, como quem faz uma vénia, agradeci.

2 comentários:

  1. Subscrevo inteiramente. É daquelas experiências que pelo menos uma vez na vida, tem que se fazer!

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  2. Ao que parece tivemos a mesma reacção, agradecer à "Mãe Natureza" pela beleza das coisas que podemos observar.
    Não foi a primeira vez que o fiz, e não será certamente a última...
    Obrigado "Mãe Natureza"!

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