23 novembro, 2011

Voltei agnóstica de Jerusalém.


Entrámos na cidade já era noite. Luzes, carros, motas, pessoas, ruas estreitas e um caos geral e habitual deu-nos as boas vindas. Seguíamos dentro das carrinhas, pés descalços, calções e as toalhas de praia enroladas a um canto salgadas do banho perto de Cesareia. O suíço que ia a conduzir perdeu toda a neutralidade frente à barbaridade do tráfego intenso e, entre apitadelas e asneiras, deu-se o desmembramento da nossa caravana. Algumas infracções depois apostámos em encostar e telefonar aos guias locais para nos virem orientar até ao hostel. Estávamos perto do bairro judeu, construções simples, modernistas, brancas e com jardins. Pelas ruas largas passeavam homens de kippah ou de chapéu preto com abas, barba, fato também ele preto e com o casaco bem comprido. É quase como se fosse um uniforme imposto pela religião, faça chuva, faça sol, o traje acompanha o quotidiano do homem desde a juventude. Novamente em andamento, passámos por paragens de autocarros onde se viam rapazes e raparigas vestidos com a farda militar, cenário que por esta altura já se tornara recorrente para nós e que significa o cumprimento do serviço militar obrigatório israelita. Entrámos na zona árabe da cidade, evidentemente muito mais desorganizada e negligenciada. O lixo dos mercados e bazares acumulava-se nos passeios e as ruas atrofiadas e sinuosas estavam entupidas com o trânsito. As pessoas atravessavam-se indiferentemente pelo meio dos carros e ouvia-se música e vozes que chamavam bem alto.

Do Monte dos Olivais parámos para observar os muros da cidade velha que se erguia em frente, um cemitério muçulmano aos seus pés e algumas cúpulas a pontuar a paisagem nocturna. Só à luz do dia seguinte é que observámos de perto as marcas nos muros deixadas por balas ao longo de décadas de conflito pelo domínio desta cidade. O nosso guia, o Amos, levou-nos a conhecer os telhados de Jerusalém num percurso extenso sobre a muralha velha: ao sol e ao calor, ora sobe dez degraus, ora desce dois, sobe mais uns cinco e torna a descer. O casco antigo da cidade, muito denso, tinha os terraços carregados de antenas, depósitos de água, parabólicas, tijolos, tralha e bandeiras. As construções no interior da muralha são muito disputadas por judeus e muçulmanos que, sempre que conseguem adquirir uma casa, fazem questão em evidenciar quem lá vive, seja colocando uma bandeira israelita, seja construindo uma cúpula encimada por uma lua muçulmana. O perfil da cidade velha é composto por alguns minaretes, torres com sinos, cruzes e estrelas de David. Intramuros, a cidade é organizada em quatro bairros principais: cristão, muçulmano, judeu e arménio. Como não poderia deixar de ser, tantas culturas diferentes a conviver num mesmo espaço geram, por vezes, conflitos (se bem que no caso de Jerusalém, actualmente, o mercado do turismo e da peregrinação acaba por prevalecer e afastar qualquer disputa interna significativa). Apesar de em Israel habitarem maioritariamente judeus e de o estado ter atingido um grau de estabilidade e desenvolvimento sustentável e moderno, este é um problema que se estende ao resto do país, sobretudo devido à presença de algumas comunidades árabes com forte expressão da sua cultura. Israel é neste momento um país caracteristicamente judeu no Médio Oriente e, apesar de os países vizinhos árabes reconhecerem o Estado de Israel (pois Israel é um país com uma história bem antiga), não aceitam a legitimidade judaica sobre esta terra. Jerusalém exprime a concentração e contaminação máxima de religiões e culturas, pessoas e tradições, onde toda a gente tem o mesmo direito sobre a sua fé.

Depois de dar meia volta aos telhados de Jerusalém, foi altura de descer às entranhas da cidade, à gigantesca caverna que serviu de pedreira ao rei Salomão, onde o nosso guia achou por bem dar-nos uma lição de duas horas sobre a Terra Santa, debaixo de terra. Confesso que não ouvi muito... Subindo novamente às alturas, fizemos mais uma pequena maratona pelos muros, até que enfim descemos e entrámos na cidade.

Sigo directa até ao Muro das Lamentações. Foi dos cenários que mais me impressionou. O Santo Sepulcro, que visitámos mais tarde, apenas me enfastiou com o seu turbilhão de turistas, guias, flashes e fotografias, bandeirinhas e bonés coloridos. E lá pelo meio da confusão e do barulho algumas pessoas pseudo-religiosas (porque não acredito que o ambiente fomentasse qualquer sentimento de fé) ajoelhavam-se, beijavam a pedra onde morrera Jesus (?) e acendiam velas para logo depois voltarem à sua excursão e ao seu guia que falava como se estivesse a lidar com o infantário. Bem vindos à Disneyland... Junto ao Muro passava-se o mesmo. Uma família (ocidental), pais e criança, pediram-me para lhes tirar uma fotografia sorridente com o Muro como pano de fundo, os chapéus pretos dos judeus lá ao fundo a rezarem. Transformar a religião em turismo é um mercado rentável.

Junto ao Muro, que afinal não passa mesmo de um muro, homens e mulheres estão separados nas suas orações. Sendo mulher, apenas pude aproximar-me das outras mulheres que rezavam no lado direito. Coladas ao muro, em pé ou de joelhos, o fervor com que rezavam reflectia-se no ritmo do seu baloiçar para trás e para a frente, à medida que murmuravam coisas ininteligíveis com a cara enfiada dentro da bíblia. Algumas estavam verdadeiramente transtornadas, outras pareciam apáticas. Não me demorei, a pequena demonstração foi suficiente para recuar de costas, respeitando as regras e os presentes. Acções extremistas e fanáticas sempre me assustaram, pois evocam a perda de controle, de domínio e de consciência de quem as pratica. Julgo eu.

No dia seguinte, curiosos como somos enquanto estudantes de arquitectura, decidimos enveredar por um bairro especialmente sensível e extremista, sobre o qual o nosso professor nos havia previamente informado. Os judeus ultra ortodoxos vivem em comunidade fora das muralhas da cidade velha, na enorme zona que compõe a nova Jerusalém e que se desenvolveu durante o século XX. No entanto, o grau de conservadorismo em que vivem remonta a uns quantos séculos de atraso. De cabeça tapada (as mulheres), braços e pernas tapadas e em fila indiana, subimos a rua principal do bairro sem parar para olhar. Houvera relatos recentes de uma turista maltratada por estes lados. Nem tirei a máquina fotográfica de dentro da mala, não fosse alguém lembrar-se de ma partir. Grandes cartazes em hebreu e inglês pediam o favor de não usar “inmodest clothing in our neighborhood, such as skirts, short sleeves, tight clothes, ...” Com o calor, apeteceu-me tirar o lenço da cabeça quando reparei em mulheres que também não o usavam. Até que me chamaram a atenção para o facto de essas mulheres estarem a usar perucas, muitas delas rapam o cabelo. Os homens trajam todos da mesma maneira, umas túnicas cinzentas pelo joelho com camisa branca por baixo, uma corda especial à cintura e chapéu de abas. Deixam crescer a barba e as patilhas em rastas ou canudos (duas coisas compridas penduradas de cada lado das orelhas), pois os seus mandamentos não permitem o uso de lâminas de corte na cara, tal como não permitem o consumo de carne de porco, nem a produção de fogo durante o Sabbath, o dia de descanso da comunidade (razão pela qual não se cozinha neste dia, não se pode andar de carro, nem sequer chamar um elevador – há edifícios onde durante o Sabbath existe um elevador a correr para cima e para baixo continuamente de forma a não ser necessário carregar no botão que produz a faísca que desencadeará todo o processo mecânico do elevador). Como diria o nosso guia: “why? Because it says so in the bible!”

A comunidade dos ultra ortodoxos, bem no centro da cidade, vive em segregação face a tudo o resto que a cerca, tem as suas próprias escolas, o seu comércio e a sua economia. Raramente se avistam estas pessoas noutros bairros da cidade e duvido que frequentem supermercados, museus ou faculdades. Não pretendem misturar-se e vivem no seu próprio conceito de sociedade. Lembro-me de pensar, enquanto atravessava as suas ruas, que futuro terão estas pessoas?

Para rematar quero salientar que provei aqui em Jerusalém o melhor húmus de Israel, numa tasca debaixo duma arcada, e que a noite de Sábado é muito divertida e concorrida nos bares da zona perto da Zion Square. Existe também aqui uma faculdade de arquitectura que encontrámos por acaso e que fomos espreitar.

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