18 agosto, 2012

Ciganos na Noruega | Capítulo 3



O dia de anos da E. foi um bom dia para (quase) todos. Começou inundado de sol.
Decidimos subir às montanhas e procurar o melhor spot possível para prepararmos o brunch matinal. Os rapazes tinham comprado alguns frescos e ingredientes extra na véspera para surpreenderem a E. Na subida, parámos num dos pontos altos do itinerário que agora seguíamos atentamente pelo livro – a ponte projectada sobre o fiorde em Stegastein. Por sorte, àquela hora, os turistas ainda não tinham inundado o sítio e demorámo-nos a tirar fotografias. Seguimos, sempre a subir, a paisagem ficou branca de neve. Era impressionante a altura que atingia nas bermas da estrada, algumas das “casas de banho arquitectónicas” estavam mesmo inacessíveis, enterradas debaixo da neve. Parámos no miradouro em Vedahaugane para prepararmos um brunch branco de neve.




Entretanto, o M. tinha dado conta de que se esquecera da máquina fotográfica na ponte de Stegastein. Tirámos as caixas de comida e o equipamento que precisávamos para fora do carro enquanto ele voltava para trás, à procura da máquina (que foi dada definitivamente como desaparecida). As pessoas nos poucos carros que passaram por nós naquela manhã solarenga e amena ficavam incrédulos a olhar para quatro jovens relaxados, perdidos algures nas montanhas, a cozinharem bacon e ovos num fogão portátil, com imensa tralha a toda a volta e sem nenhum carro por perto.
Uma hora depois o M. regressou com a carrinha e voltámos à estrada. Descemos a grande velocidade pelo asfalto sinuoso, nunca adivinhando o que estaria para lá da curva apertada com a visibilidade cortada pelas muralhas de neve. Novo ferry, novo fiorde, águas transparentes, muito convidativas. Ainda testámos com o pézinho a temperatura da dita, mas rapidamente mudámos de ideias. De novo a trepar as montanhas, desta vez chegámos a Nedre Oscarshaug, Sognefjellet, onde um elemento de vidro giratório montado numa estrutura metálica permitia observar e saber a altura das montanhas circundantes, as mais altas da Noruega. Era uma peça bastante elegante.


A meio da tarde, estacionámos no último ponto marcado no percurso daquela região, o parque de merendas de Liasanden, e discutimos novamente o rumo a tomar enquanto o nosso fiel primus amarelo aquecia água para o chá das cinco. Punha-se a hipótese de fazer um pequeno (grande) desvio para Este para visitar o Reindeer Pavilion dos Snøhetta. Era uma obra muito pequena e estávamos na dúvida se valeria o esforço, nunca voltaríamos a estar tão perto. Penso que, no fundo, nós os quatro, os interessados em arquitectura, tínhamos a certeza de que queríamos lá ir. Apenas o M. divergia – tinha de acabar e enviar um trabalho para a faculdade dele ainda nesse dia e optou por ficar em Lom, no parque de campismo, de onde partiríamos na manhã seguinte de acordo com o itinerário estabelecido no livro das rotas turísticas.
Não sabíamos muito bem onde ficava a obra. Apenas tínhamos retirado do Archdaily uma morada e colocado no Google Maps para ficarmos com uma ideia. Mas estávamos conscientes de como isto poderia correr mal.
Conduzimos durante talvez uma hora e meia. Ninguém conhecia o pavilhão, nem no centro de turismo de Lom, nem num acampamento de treino militar a escassos 2 ou 3km do sítio que procurávamos. Não se viam árvores e os montes ainda continham restos de neve no meio duma paisagem áspera e vazia, dominada pelos castanhos e verdes secos de uma vegetação muito rasteirinha. Demos com uma zona com cartazes informativos e uns poucos carros estacionados junto ao início de um percurso pedestre. Sem sabermos se o caminho nos levaria até ao sítio pretendido, empreendemos marcha. Após 1,5km avistámos, com entusiasmo crescente, a construção a delinear-se no horizonte à luz branca dum fim de tarde nublado.


Uma caixa de aço da cor da paisagem. A entrada, uma parede ondeante de troncos de madeira dispostos horizontalmente, esculpidos. No interior, a distorção da parede de madeira cria uma pequena bancada que remata ao fundo num movimento que envolve o fogão preto suspenso. A face oposta do paralelepípedo é inteiramente envidraçada, espelhando a paisagem. Pequenos prumos metálicos escuros seguram os vidros ao nível do chão, reflector, permitindo a apreciação total e sem interferências do exterior, evaporando-se a fronteira entre um e outro ambiente.
Experimentámos a porta, duvidando da nossa sorte, e ela abriu-se, convidando-nos a entrar. Sentimos o ar morno do interior ao mesmo tempo que o nossos ouvidos eram inundados de várias vozes alegres. Muitos olhos azuis suspenderam as conversas e fitaram-nos. Um grupo de seniores (todos certamente reformados) estavam sentados nas bancadas em torno do fogão e conversavam animadamente. Equipados desportivamente, com botas de montanhismo e apetrechados com o thermos do café e um par de binóculos cada, eram os membros do Reindeer Club que ali estavam no último encontro da estação. Sejam bem vindos! Curiosos e hospitaleiros, dirigiram-se-nos num inglês hesitante enquanto uma senhora sorridente nos distribuía bombons de chocolate. Eram todos habitantes duma localidade próxima e quiseram saber de onde vínhamos. Estavam muito orgulhosos do seu novo observatório, “acho que até ganhou um prémio”, disse alguém.
Sentámos-nos e ali ficámos, calados, durante bastante tempo, as vozes dos nossos amigos noruegueses a acompanharem os nossos pensamentos. Em frente, erguia-se a montanha Snøhetta. Toda a força deste pequeno objecto arquitectónico dirigia-se à paisagem, o resto contribuía para o conforto de quem assistia ao cenário exterior. Quase que podia vê-las, às renas, disfarçadas na minha imaginação naquela paisagem malhada e despida. Que sorte estar aqui. Apesar de ter registado mentalmente pequenos aspectos da construção (sobretudo as grandes peças de madeira que nunca tinha visto ser trabalhada daquela forma), demorei-me especialmente a usufruir do espaço para o efeito para o qual tinha sido projectado – enquanto observatório. Quando finalmente nos decidimos arredar dali para fora (com mais uns chocolates nos bolsos) o único comentário que se fez referia-se ao facto de termos deixado o M. para trás... senão, poderíamos ter passado aqui a noite, num lugar incrível.




Ainda dentro dos horários convencionais (que em poucos dias seriam completamente subvertidos), acordámos de manhã no dia seguinte, arrumámos e saímos, esquecendo (?) de pagar a noite no parque de campismo. Espreitámos a bonita igreja de madeira local e juntámo-nos aos outros turistas que começavam a rastejar molengamente pelas estradas. Parámos mais à frente num engarrafamento de roulottes causado pelo avistamento de uma manada de renas e à hora de almoço já nos encontrávamos num dos fiordes mais concorridos com os seus ferries de cruzeiro gigantes (pequeninos nestes montes) a conferir escala ao vale. Evitámos atropelar os turistas ricos com os seus chapéus de palha e óculos de sol que tentavam trepar até ao miradouro e desesperámos atrás dos autocarros que roncavam em primeira enquanto escalavam as estradas apertadas.
Ainda não nos tínhamos visto livres das enxurradas de turistas que os autocarros despejavam quando chegámos ao novo café (já a funcionar, mas ainda em fase de acabamentos) de Gudbrandsjuvet. Mais uma vez, uma série de pontes e percursos sobre uma cascata levava ao local que ficava escondido no meio da vegetação tranquila e com vista privilegiada sobre a corrente de água. A grande diversidade de materiais (sempre num registo natural e neutro) e alguns motivos divertidos integrados na construção conferiam algum dinamismo e interesse às diferentes situações que se atravessavam no interior (de dimensões bastante reduzidas) e no exterior.

O momento alto do dia pelo qual esperávamos chegou pouco depois - o conjunto de Geiranger-Trollstigen.
Tudo brilhava, tudo reflectia luz. O manto branco, ainda espesso, que cobria as montanhas diluía-se nos canais e piscinas que ajudavam a reflectir a luz solarenga ao longo dos percursos, acompanhados pela cantilena de água a fugir. No fim do caminho, tal como um lagarto ou uma iguana com a cabeça e as patas esticadas em diferentes direcções, um miradouro agarrava-se, rasteiro, à encosta da montanha, atrevendo a empoleirar a cabeça no vazio. Lá em baixo, a estrada estreitinha arrepiantemente sinuosa parecia convergir com os fios de água prateados que desapareciam no vale verdejante. [que poder metafórico!]
Foi, sem dúvida, um dos meus cenários preferidos.
Tirámos à sorte quem seria o afortunado a levar a cabo o rally pela referida estrada abaixo, calhando a tarefa ao francês que propiciou um momento de verdadeira adrenalina de alta velocidade e que, pelo menos da minha parte, provocou gritinhos iiiiiiihhhhh e alguns pensamentos catolicistas como ai-jesus-que-se-vem-alguém-a-subir-morremos-aqui.





Nesse fim de dia, aportámos em Ålesund para umas cervejas ao sol num pequeno cais e encontrámos, a escassos quilómetros da cidade, um campo junto ao mar onde passar a noite. Acendeu-se uma fogueira e comemos salmão roubado (obra da E.) com knäckebröd trazido da Suécia enquanto esperávamos pelo escuro que substitui o sol e que, nessa noite, não veio mesmo.


Domingo, dia 8 de Junho, tínhamo-nos comprometido estar em Trondheim para acolher um novo membro que chegava nessa tarde de Estocolmo. Para além disso, tínhamos uma anfitriã que nos esperava para nos dar guarida ao fim do dia. Foi, portanto, com alguma pressa que conduzimos pela estrada do Atlântico com mar e céu azul, parando para a fotografia obrigatória na ponte dramática em curva inclinada que se vê nos anúncios da volvo.
Cansados da intensidade dos últimos dias, chegámos ao fim da tarde à cidade e inquirimos com alguma dificuldade sobre a morada que tínhamos. Quando finalmente nos aproximávamos do local, ainda apanhámos o H. que avistámos a descer a rua com uma inconfundível mochila de campismo às costas. Estacionámos a nossa carrinha de ciganos em frente à casa da G. que nos veio cumprimentar ao jardim, enquanto os vizinhos deste subúrbio tranquilo nos espreitavam desconfiados por cima das sebes verdes. Sempre bem disposta, levou-nos para o interior onde tinha à nossa espera uma deliciosa e quente sopa de tomate onde mergulhámos fatias de ovo cozido e pão.
Nessa noite (que, como já referi, deixou definitivamente de ser escura), ainda tivemos coragem de ir conhecer um pouco o ambiente urbano nocturno de Trondheim. Apesar de já ser bastante tarde (e Domingo) ainda dançámos e bebemos um pouco no Familien, a conselho da G.


06.06 - 08.06
1060 km
Aurlandsfjellet-Sognefjellet-Hjerkinn-Geiranger-Trollstigen-Ålesund-Myrbærholmen-Kristiansund-Trondheim
Fotos: R. Keys | Canon EOS 550D

12 agosto, 2012

Ciganos na Noruega | Capítulo 2


[R. Keys] Canon EOS 550D

Dirigimos-nos a Pulpit Rock, perto de Stavanger. Apesar do R. se ter andado a queixar ultimamente de umas dores num dos pés (o que era o pretexto ideal para se escapar a algumas das tarefas mais chatas exigidas pelo campismo) ia na frente quando enveredámos pelo meio de mato e calhaus juntamente com muitos outros turistas de aspecto atlético para subir um percurso de quase 2 horas (3,8km) que nos levaria ao cimo do fiorde (604m). O nome do local advém de uma pedra enorme que se atinge no fim do percurso e que se encontra perigosamente empoleirada no cimo duma escarpa, debruçada sobre uma paisagem avassaladora, tornada ainda mais espectacular pelo céu carregado em vários tons de cinzentos escuros. As grandes e dramáticas arestas graníticas afiadas de todo o cenário conferiam um geometria e austeridade ao conjunto que se contrapunha à pequena escala humana que formigava na paisagem.

Como sempre, a Teresa, a menos atlética do grupo, foi ficando para trás, ofegante e transpirada. Por duas vezes desviou-se involuntariamente das setas vermelhas e dos sinais que indicavam o caminho certo, qual cabra montanhesa a trepar escarpas e a saltar de pedra em pedra durante duas horas e a um ritmo, para ela, bastante acelerado. Todo este conceito a que chamavam “hiking” (para o qual até tinha as botas merrell adequadas, sem o saber) com todos os noruegueses e estrangeiros super equipados e super desportivos, era novidade.

Pelo caminho, à medida que me distanciava dos outros, encontrando-os mais à frente a mergulhar num lago gelado sob umas nuvens ameaçadoras, distraí-me e fui pausando para tirar algumas fotografias.
Umas 4 horas depois reunimo-nos novamente junto da carrinha, transpirados e sedentos. A questão que se punha agora era: pagamos ou não pagamos as 100 coroas de estacionamento? Não nos apetecia muito, já tínhamos uma multa de estacionamento por termos largado a carrinha num lugar perfeito, vago, mesmo em frente da Ópera em Oslo... Foi assim que começou o nosso historial de ciganos na Noruega, o que se pudesse poupar, poupava-se!
O T. sentou-se ao volante e preparou-se para acelerar atrás do carro que pagava o estacionamento na máquina antes da cancela. No último instante, hesitou e a cancela desceu. Deu-lhe um pequeno ataque de fúria francesa, virou o volante todo à direita e, antes que nos apercebêssemos do que fazia, subiu o passeio e fez passar a carrinha entre as barreiras e um calhau enorme enquanto nós nos encolhíamos todos nos assentos, de boca aberta, com todos os outros turistas a olharem para nós. Desaparecemos a acelerar.



Canon AE1 | FujiColor 800 ASA

Talvez uma hora depois, encontrávamo-nos a conduzir por montes verdes e túneis escuros, estradas serpenteantes de duas faixas. Após alguns dias de condução, chegámos à conclusão de que a Noruega não conhecia o conceito “auto-estrada”. Mas pagavam-se portagens na mesma. Havia estradas que até terminavam abruptamente na pista de entrada de um ferry para serem depois retomadas na outra margem.
O tempo continuava húmido e cinzento. Viam-se fios de água a cair em cascata pelas encostas dos fiordes anunciando o descongelamento dos últimos restos de neve. Foi numa das curvas da estrada que nos deparámos inesperadamente com o primeiro elemento que identificámos como fazendo parte dos “Nasjonale turistveger” - Svandalsfossen. Uma cascata enorme e barulhenta que pulverizava tudo em redor descia do nosso lado esquerdo e atravessava-se por baixo da estrada, indo de encontro à agua. Um conjunto de escadas e pontes em betão, aço cortén e pedra acompanhavam o seu percurso, permitindo chegar muito perto. Descemos às pedras e trepámos pelo meio das árvores, descobrindo os ângulos e pontos de vista retorcidos que nos permitiam observar a cascata natural.





Canon AE1 | FujiColor 800 ASA

Uma das características da paisagem norueguesa é a transitoriedade do seu clima, à medida que se avança pelo território. Houve alturas em que rapidamente, em menos de uma hora talvez, deixávamos para trás a água límpida de um fiorde com os seus campos verdes, céu azul e 20ºC ao sol para subirmos ao nevoeiro e autênticas muralhas de neve que ladeavam as estradas no topo das montanhas. O M. vestia os calções de banho a pensar em dar um mergulho cá em baixo e depois saía do carro lá em cima e ficava enterrado em neve, as perninhas expostas.

A chuva acompanhou-nos enquanto abandonávamos a cascata e continuámos a conduzir até bastante tarde. Enquanto houvesse luz, não era urgente parar para montar acampamento. O local que acabámos por escolher nessa noite junto a um lago meio pantanoso foi dos menos bons, mas o prato quente de arroz com courgette, cenouras e passas estufadas que eu e a E. cozinhámos (as refeições caíam sempre à responsabilidade das meninas) compensou. Na manhã seguinte acordámos cedo, deviam ser 8h, e com muitas vozes à nossa volta. Quando um objecto pesado caiu num dos lados da tenda, o T. abriu a porta furioso e deparou-se com uma turma de uns 25 miúdos. Estavam numa excursão de bicicleta e preparavam-se para meter umas canoas na água. Foi pretexto para nos pormos rapidamente a andar dali para fora. Gradualmente fomos ficando melhores e mais rápidos a levantar e arrumar o acampamento e para o fim da viagem já se faziam competições entre os rapazes para registar recordes para a operação de desmontagem da tenda grande.




[R. Keys] Canon EOS 550D

Voltámos aos fiordes de águas azuis e verdes, o dia alternava entre a chuva e o sol. Conduzimos muito, atravessámos montanhas onde ainda caía neve, passámos por algumas “casas de banho de interesse arquitectónico”, apanhámos alguns ferries (eu e a E. escondíamo-nos no meio das malas para evitar pagar mais umas tarifas desnecessárias) e chegámos a Bergen, já a tarde ia adiantada. Na cidade, conseguimos finalmente comprar a publicação com o resto do roteiro onde surgiam as peças arquitectónicas que nos interessavam.
Bergen é um destino super turístico. Demos uma volta, um sítio bonitinho, arranjadinho e pequenino, com muitos chineses, mas rapidamente nos cansámos e quisemos voltar à estrada e à natureza. Nem me sentia bem a andar em ambiente urbano, digamos que 5 noites de campismo selvagem já se reflectiam no meu aspecto. Ainda parámos num café porque os rapazes se queixavam que precisavam de wi-fi nos iphones (são perfeitamente dependentes do facebook, apesar de insistirem que precisavam de responder a emails importantes) e o T. pagou o lanche mais caro da sua vida – 16€ por um café e uma fatia de bolo e nem conseguiu apanhar internet!

Julgo que foi por esta altura que começámos a fazer muitos quilómetros por dia. A maior parte desta viagem limitou-se a ficarmos sentados na carrinha a ver desfilar paisagens lá fora, de vez em quando saltando para fora para mais um ponto de paragem arquitectónico. Era o fim de terça-feira, dia 5 de Junho, e tínhamos de estar em Trondheim na sexta-feira para nos encontrarmos com o H. Ainda havia muito para ver e a intensidade dos dias aumentou.
Conduzimos até muito tarde, a paisagem mudou, os túneis tornaram-se mais compridos, as escarpas de rocha altas e rectas substituíram as encostas e os vales verdes – de alguma forma a sua presença parecia mais próxima e a nossa escala bastante reduzida.
Parámos para passar a noite num sossegado parque de campismo, perdido nesta paisagem monumental. A E. fazia anos no dia seguinte e o seu desejo de aniversário era tomar um duche. Jantámos na minúscula cozinha do local perto da meia noite, brindámos, conversámos um pouco e discutimos o dia seguinte.



04.06 - 05.06
640 km
Pulpit Rock [Preikestolen]-Svandalsfossen-Bergen-Aurland

08 agosto, 2012

Ciganos na Noruega | Capítulo 1


21 dias, 7600km, 24h de sol, 6 duches.

No último dia de Maio partimos. Juntos, mais uma vez, adiando despedidas e promessas de reencontro para dali a um mês. Junho, tínhamo-lo na mão.

Com menos de uma semana para prepararmos 21 dias de viagem, os primeiros tempos foram de experimentação e organização. Falta isto, aquilo não funciona, uma hora para pôr a tenda em pé, tudo a voar para fora da carrinha, coisas já dadas como desaparecidas... ordem, ordem, ordem!

Confiando nas direcções do Google Maps, conduzi para fora de Estocolmo uma carrinha com 5 pessoas e respectivas bagagens acumuladas durante um ano em erasmus. Na primeira oportunidade, e também à medida que mais pessoas se juntavam ao grupo, fomos sacrificando material desnecessário. A carrinha passou a ser a nossa casa, não tínhamos outro refúgio a não ser as tendas e o conforto dos assentos. 21 dias ao ar livre, alguns passados a dormir debaixo de chuva, outros debaixo da claridade nocturna do sol do Norte.

O primeiro destino: Oslo. Tínhamos dois dias para lá chegar, o encontro com o T. estava agendado para Sábado, às duas da tarde, na Ópera. Parámos então a meio caminho para passar a noite e surge logo uma discussão que se repetiria praticamente todos os dias: onde acampamos? ‘Já é tarde’ ou ‘hoje quero tomar duche’ eram desculpas para seguir para um parque de campismo, mas desde cedo que as começámos a ignorar porque todos os dias eram cada vez mais tarde e os duches, miragens em terceiro ou quarto plano.

Mas a discussão continuava: aqui o terreno não é plano, não é fofo, há vento, não há lenha, está tudo molhado, não se consegue estacionar, tem mosquitos, está demasiado exposto, ... enfim, não é bonito. Queremos um bom sítio para passar a noite, estamos na Noruega! Um país conhecido pelos seus cenários naturais incríveis. A maior parte das vezes, depois de voltas e desvios, encontrávamos o sítio que procurávamos, é aqui!

[R. Keys] Canon 550D

Por sorte, logo na primeira noite, enquanto conduzia por trilhos florestais na demanda pelo spot perfeito, tivemos o nosso primeiro contacto com a fauna selvagem nórdica. Encontrávamo-nos ainda em solo sueco, na zona de Hammarö, perto de Karlstad. Cuidado! Vai ali um alce aos pulos! Pára, pára! Olha outro! Olha uma raposa! Leva um bicho na boca... E ali ao fundo andam veados aos saltos! Um moosesafari completo em menos de 10 minutos... Demos a nossa demanda por bem sucedida e resolvemos acampar no parque de campismo local onde ainda nos debatemos durante uma hora com a tenda gigante laranja que trazíamos. Na manhã seguinte, depois de armazenarmos um mega carregamento de mantimentos, deixámos a Suécia de vez e só parámos em Oslo.

Apesar de não conhecermos a cidade e de termos gostado do pouco que vimos em dois dias (sendo a Ópera um ponto de paragem obrigatório não só para apanharmos o T., mas sobretudo por sermos um grupo de curiosos da arquitectura), estávamos desejosos de nos fazermos à estrada e deixar a vida urbana para trás. O intuito da viagem era conduzir muito e tentar chegar o mais a norte possível. Antecipávamos a nossa incursão nos territórios remotos noruegueses e fazermos um wild camping sério, como deve ser. Digamos que acampar em Oslo, mesmo que seja num parque junto a um lago (Sognsvann) a 10min de carro do centro, faz figura de acampamento de ciganos ou imigrantes...

Conhecemos uma amiga da S., a quem demos boleia até Oslo, que estudava arquitectura na cidade e que nos mostrou a escola. Para além disso também nos emprestou a casa de banho dela onde demos início à contabilização dos nossos duches. Mais uma vez, e como temos vindo a fazer nas nossas viagens, explorámos os cantos à faculdade. Estavam em entregas finais na AHO (Arkitektur- og designhogskølen i Oslo), pelo que tivemos um vislumbre dos últimos preparativos para as apresentações. As instalações eram relativamente recentes e bem equipadas e notava-se uma preocupação e detalhe na materialidade e espacialidade que caracterizava o edifício, algo bem diferente da nossa escola em Estocolmo. Talvez inspirados pelo ambiente circundante, ou influenciados pela cultura arquitectónica norueguesa, também os alunos trabalhavam em projectos muito claros em que o conceito adquiria uma expressão quase artística na sua interpretação física. As apresentações misturavam bons desenhos e maquetas bem executadas, não deixando de recorrer a técnicas e instrumentos variados e pessoais, conseguindo no entanto a harmonia do conjunto e sensibilidade na escolha de cores e materiais neutros, mas significativos.



Canon AE1 | Fuji Superia 200 ASA

Após duas noites de campismo junto ao lago em Oslo (onde lavámos loiça de cócoras à vista de todos os joggers citadinos que por lá exerciam o físico ao fim do dia) e depois de umas últimas cervejas nocturnas em ambiente urbano, era altura de empreender marcha. Chovia na manhã em que desmontámos o acampamento e subimos de carro ao Holmenkollen ski jump que alguém se lembrara dizer ser da autoria de Zaha Hadid (verifiquei na Wikipedia há dias, diz ser do gabinete dinamarquês JDS). Tirámos a foto mandatória e passámos a restante meia hora no pequeno café existente no vão da enorme estrutura a discutir o rumo a seguir. Para fazer as coisas como deve ser, deveríamos ir até à costa sul e, dali, ter a experiência inteira da subida para norte. De volta ao carro, traçámos no mapa o percurso que nos levaria até Kristiansand, cidade costeira no sul, onde por acaso demos de imediato com o inesperado Kilden Theatre & Concert Hall dos finlandeses ALA. Ainda não tínhamos conseguido imprimir nem comprar a publicação que se revelaria fundamental para o nosso itinerário durante aquelas 3 semanas – “Nasjonale turistveger” reunia um conjunto de percursos marcantes na paisagem norueguesa, de norte a sul, pontuados por pequenas intervenções contemporâneas de interesse arquitectónico-paisagístico como miradouros, percursos pedestres, pontes, wcs, cafés ou zonas de merendas. Inquirir acerca da “casa de banho arquitectónica” mais próxima passou a ser ritual de todas as manhãs.

Na aproximação a Kristiansand a paisagem mudou repentinamente à saída de um túnel e encontrámo-nos a atravessar uma ponte alta, cheia de sol, com uma língua de água lá em baixo entre dois montes verdes. Finalmente, os cenários prometidos começavam a surgir timidamente e imediatamente as máquinas fotográficas saltaram das malas. O ambiente no interior da carrinha também mudou, a música tocava bem alto, o sol entrava pelas janelas e as expectativas deixavam-nos animados. A grande velocidade, como aliás era sempre costume, entrámos na cidade e travámos a fundo em frente à cobertura ondulante do Kilden.



Canon AE1 | Fuji Superia 200 ASA

Deixámos pouco depois a preguiçosa e domingueira Kristiansand após uma pausa que deu para desenhar, fotografar, deambular no interior do Concert Hall, perder uma bola de futebol no canal, comer uma caixa grande de bolachas e conversar com um senhor norueguês que chegou de barco e disse ser músico. Estava curioso em saber qual o nosso objectivo tão a norte e adiantou-nos que se tivéssemos sorte com o tempo, veríamos o “midnight sun. And maybe have some midnight fun...” Dissemos adeus e seguimos em direcção a Stavanger. A tarde ia adiantada quando decidimos parar numa pequena vila e perguntar se haveria algum supermercado na zona, aberto. Dois noruegueses locais partiram-se a rir na nossa cara. Com um forte sotaque, aconselharam-nos numa próxima vez a escolher um “destino mais civilizacional.”

Descobrimos o céu azul, aberto, da costa. O sol já se punha e procurámos um sítio para acampar. Após algumas paragens em zonas com potencialidades para a prática do campismo e algumas excursões por campos e calhaus com rebanhos de ovelhas, decidimo-nos por um campo aberto de erva fofa debaixo da lua cheia. Os rapazes encontraram alguma lenha, apesar de não ver árvores nenhumas por perto, e eu e a E. abrimos a garrafa de Porto enquanto preparávamos o jantar. Ao outro dia de manhã, quando eu e o T. pegámos na loiça para a ir lavar a uma pequena enseada, descobrimos que uma fila de ovelhas se nos tinha atrelado, atraída pelo barulho dos tachos e talheres que o T. transportava. Ele andava, elas andavam. Ele parava, elas paravam. Ele olhava para elas e elas respondiam da mesma maneira.

Nesse dia, deixámos para trás a costa azul e verde com as suas vacas castanhas a pastarem junto à água e os celeiros vermelhos a pontuarem a paisagem plana. Apanhámos o nosso primeiro ferry e não resistimos a vir cá fora espreitar a paisagem montanhosa debaixo de um céu carregado. O barco cheirava a óleo.


[R. Keys] Canon 550D


31.05 - 04.06
1080 km
Stockholm-Hammarö-Oslo-Kristiansand-Stavanger

05 agosto, 2012

Recordações da terra do caviar e vodka.

Ora, aviso já que vou reservar direitos de exclusividade sobre este blog durante, pelo menos, o resto do mês...
No final de Abril, última entrada que fiz no Prato do Dia, em Estocolmo, encontrava-me em rescaldo da ida à Rússia. Prometi fotos? Não me lembro. Mas aqui ficam alguns pormenores dessa viagem delirante (culpa do vodka?) enquanto repesco as entradas do mês de Junho.






 



 



 

 





Санкт-Петербург + Москва
Canon AE1 | Fuji Superia 400 ASA